Walt Disney — Tudo Começou com um Rato (120 Anos de seu Nascimento)

PRÓLOGO
No último 5 de dezembro de 2021, Walt Disney completou simbolicamente 120 anos de seu nascimento. E no dia 15 de dezembro se completaram 55 anos de seu falecimento.
Esse texto vem como uma homenagem ao seu legado artístico e cultural. Também para desmentir muita fofoca e ideia errada que o grande público tem dele ou que a mídia propagou por décadas. Não, Walt não era antissemita. E ele NÃO foi congelado depois de morto.
Através do meu post, quero mostrar as diversas nuances desse que é até hoje uma das figuras públicas mais famosas e celebradas do mundo, criador e dono de um império fantástico, pioneiro da animação, visionário dos parques temáticos, enfim… Mais do que isso tudo, apresento o homem por trás do mito.

O biógrafo Neal Gabler, autor de Walt Disney — O triunfo da imaginação americana (publicado no Brasil pela Novo Século), escolheu duas palavras-chave para definir Walt. A primeira: escape, em inglês fuga ou libertação. Desde criança Walt já vivia num mundo à parte. Ele cresceu na região interiorana do Meio Oeste americano, numa terra de fazendas, natureza, animais, simplicidade e costumes rústicos. Disney também desde cedo nutriu uma verdadeira paixão por trens, algo que ele levaria adiante na construção de trenzinhos e depois nos seus projetos grandiosos da Disneyland. Enfim, mesmo após o sucesso e dono de um império, Walt nunca abriu mão de seus valores de rapaz do campo. E através das suas animações e fantasias, ele procurava uma válvula de escape, a criação de um mundo de inocência, fantasia e eterna juventude, como um Peter Pan que se recusava a crescer no coração. E assim era Walt Disney: um homem criança.

O segundo termo para defini-lo é controle. Para administrar esse aglomerado de sonhos e fantasias e enfim tornar tudo isso realidade, Disney se tornou uma pessoa extremamente perfeccionista, por vezes controlador e até mesmo tirano. Ciente desde uma idade precoce que a vida real é insuficiente, frustrante, e que não temos total domínio sobre nosso destino, ou que muito do que quisermos e almejarmos nos será eventualmente negado, Walt procurou no seu trabalho e nas suas criações uma forma de controle. Já que ele não podia controlar o mundo ou o fluxo da vida, ele podia controlar suas invenções, seus desenhos, seu estúdio, seus parques… Enfim, ser dono do mundo criado por ele mesmo: o mundo Disney.

WALT ANTES DE MICKEY: ORIGENS, INFÂNCIA E JUVENTUDE NO MEIO OESTE AMERICANO
Walter Elias Disney era o seu nome completo. Disney é um nome inglês de origem francesa, de uma cidade da Normandia chamada Isigny. Então, “D’Isigny” (de Isigny) acabou com o tempo virando Disney.

Os ancestrais de Disney se espalharam pela Europa, mais especificamente na Irlanda. O pai de Walt, Elias Disney, nasceu no Canadá (então ainda província da coroa britânica). A mãe de Walt, Flora Call, nasceu em Ohio e tinha ascendência alemã e inglesa.

O sagitariano com ascendente em Virgem e lua em Libra Walt Disney nasceu no dia 5 de dezembro de 1901 na cidade de Chicago, estado de Illinois. Walt era o quarto de cinco filhos — seus irmãos mais velhos eram Herbert, Raymond e Roy, e em 1903 nasceu a irmã caçula Ruth.

Mas não seria Chicago, e sim Marceline, cidade do Missouri, que marcaria para sempre o imaginário de Walt. A família se mudou para lá quando ele ainda tinha quatro anos, em 1906. Walt nunca se esqueceu dos pequenos prazeres vividos em Marceline: o contato com os animais e a natureza, as guloseimas, a vida familiar, e com certeza o fascínio pelos trens. Afinal de contas, ele morava perto da linha férrea Atchison, Topeka and Santa Fe Railway . Anos mais tarde, Walt exaltaria nos seus trabalhos a vida simples no campo, o amor aos animais e preservação da natureza. Nos parques Disney estaria sempre buscando fonte de inspiração em coisas que viu ou viveu em Marceline.

A rua principal da Disneyland foi inspirada na rua principal de Marceline.



“Acho que sempre fui apaixonado por trens. Quando era um menino pequeno que vivia em uma fazenda perto de Marceline, Missouri, eu tinha uma única reivindicação à fama: meu tio Mike era engenheiro no trem de acomodação de Santa Fe que circulava entre Marceline e Fort Madison. Isso era algo para me gabar com meus colegas de escola em uma época em que as ferrovias se destacavam no esquema das coisas e as locomotivas a vapor eram formidáveis e empolgantes.” W.D.
Na infância começou também a sua paixão por desenho. Seu primeiro “trabalho” como desenhista foi ainda criança, ao desenhar o cavalo de um vizinho médico aposentado. Passou a desenhar e colorir habilmente com giz de cera e aquarelas. Algumas de suas artes chegaram a ser vendidas e expostas na sua vizinhança. No fim de 1909, Walt começou seus estudos escolares junto com sua irmã Ruth.
A família Disney deu adeus a Marceline em 1911, quando se mudaram para Kansas City, a cidade mais populosa e extensa do Missouri. Lá Walt cresceu e se tornou um homem, mas o encanto da infância inocente em Marceline ficava já para trás.
A paixão por trens continuou firme e forte, no entanto. Seu tio, Mike Martin, era um engenheiro de trem na linha entre Fort Madison, Iowa e Marceline. Mais tarde, Walt trabalharia como vendedor de jornal e guloseimas na linha de trem, não tanto pelo dinheiro e trabalho em si, mas para poder viajar livremente naquele trem que ele gostava tanto.

Podemos até questionar se Walt virou um republicano feroz na maturidade para ir contra o viés de esquerda do pai no passado. Walt votou no Partido Democrata até meados dos anos 40, depois migrando para o Republicano por decepções pessoais e com certeza pelo seu ódio aos comunistas e aos sindicatos. Mas enfim, eventualmente o próprio Elias, uma vez eleitor do partido socialista, tornou-se um conservador também.

Walt tinha uma relação tranquila com sua mãe Flora, mas com seu pai Elias era bem diferente. Não se sabe bem por que, talvez pelo gênio artístico do menino, mas desde a infância de Walt houve uma antipatia entre pai e filho que se estenderia até a idade adulta e velhice de ambos. Walt levava os piores castigos e surras do pai Elias, não só por traquinagens típicas de criança mas até por situações triviais. E Walt fazia questão de fazer pior depois ou desafiar o pai. Já adulto, Walt falaria do pai em termos agridoces ou até amargos. Mas de qualquer forma, Elias pensava no bem-estar de sua família sempre em primeiro lugar, e ele nunca se opôs aos sonhos artísticos do filho, mesmo não achando que aquilo daria alguma estabilidade financeira. Walt seguiria seu instinto mesmo assim.

Por mais que tenha enaltecido valores familiares nas suas produções futuras, a vida doméstica de Walt nem sempre foi das melhores, em particular com seu pai. Então, o garoto foi procurando refúgios fora de casa. Na escola, Disney se tornou amigo do xará Walter Pfeiffer. Walter era de uma família de fãs de vaudeville e cinema, sendo ele próprio um frequentador de shows e espetáculos. Através do amigo, Walt Disney começou a se interessar pelo mundo do teatro e do cinema. A tal ponto a amizade cresceu e junto também a afeição de Walt pela família do amigo que ele passava até mais tempo com os Pfeiffer do que em sua própria casa. Walt e Pfeiffer montavam esquetes e pequenas apresentações, imitando figuras célebres como Charlie Chaplin e Abraham Lincoln.

Disney era um aluno regular, nem primeiro da turma e nem rebelde. Um garoto afável e gracioso que fazia amizades facilmente. Ele chamava a atenção na escola pelo seu talento nos desenhos. Ainda criança ele já dava sinais do animador que viria a ser — em pequenas artes como fazer desenhos em um caderno e passar as folhas rapidamente, criando imagens em movimento.

Infelizmente o desempenho escolar de Walt foi prejudicado quando começou a trabalhar como entregador de jornal, após o seu pai adquirir uma rota de entrega de dois periódicos de Kansas City. Walt e o irmão Roy tinham que acordar às 4 e meia da manhã e entregar muitos jornais antes do horário da escola, e ainda depois da escola, já quase no fim do dia, tinham que entregar mais jornais. Walt acabava dormindo na aula e tendo notas ruins, mas ele continuou entregando jornais por mais de seis anos, até meados de 1917. E de certa forma, tinha orgulho de seu trabalho.

Já adolescente, com 16 anos, Walt começou a estudar desenho. Ele também começou a fazer aulas de sábado no Instituto de Arte de Kansas City e ainda um curso a distância (por correspondência) de desenho animado. O pai Elias comprou ações numa fábrica de geleias de Chicago e assim, novamente, a família toda se mudou para Chicago, cidade natal de Walt.
O adolescente descartou a ideia de trabalhar com o pai no ramo de geleias. Walt Disney estava determinado: ele queria ser um animador. Naquela época a área de animação ainda era muito primitiva, com poucos recursos e materiais, menos ainda livros e conteúdos sobre o assunto. Mas Disney foi atrás de tudo o que estava ao seu alcance para se aprimorar na área e realizar os seus sonhos. Além da escola e estudos como autodidata, o jovem incansável frequentou aulas noturnas na Chicago Academy of Fine Arts.

Walt fez o colegial na McKinley High School em Chicago, se inscrevendo em aulas de desenho e fotografia. Lá também foi o cartunista do jornal da escola, desenhando especialmente tirinhas patriotas. Era época da Primeira Guerra Mundial.

Na metade de 1918, Walt abandonou o colegial e tentou se alistar no exército, mas foi rejeitado por ser considerado jovem demais. Para burlar a questão da idade, ele forjou a data de nascimento na sua certidão e então foi selecionado pela Cruz Vermelha para dirigir ambulâncias na França. Bad timing: Walt chegou na França em novembro, após o armistício. Mesmo com o fim da guerra, ainda havia muito trabalho a ser feito pela Cruz Vermelha. Disney aproveitou esse tempo na sua ambulância para fazer desenhos e até vender, alguns tendo sido publicados no jornal Stars and Stripes. Walt foi uma das milhões de vítimas da gripe espanhola do final da década de 1910, mas conseguiu se recuperar sem transtornos.

Walt voltou para a América em outubro de 1919. De volta a Kansas City, passou a trabalhar como aprendiz no Pesmen-Rubin Commercial Art Sudio; além disso ele ganhou uma bolsa no Instituto de Arte da cidade. Nessa época de trabalho no estúdio Pesmen-Rubin, Walt se tornou amigo do colega animador Ub Iwerks, com quem trabalharia nos anos seguintes em diversos projetos que falaremos mais adiante.

Os dois jovens se uniram num negócio de artes chamado Iwerks-Disney Commercial Artists, mas não durou muito tempo por falta de clientes e demanda. Disney achou melhor parar o negócio para ganhar dinheiro trabalhando na companhia de publicidade Kansas City Films Ad Company. Iwerks depois seguiu o amigo e foi trabalhar na empresa também. Naquela época, a companhia (assim como muitas produtoras daquele tempo) estava produzindo comerciais animados com a técnica básica de recortes: as animações eram feitas de forma plana e estilo stop motion, com cenários e personagens feitos de materiais como papel, papelão, tecido ou até mesmo fotografias.

Walt estava mais interessado na animação hoje considerada tradicional (2D) que é a animação desenhada à mão quadro por quadro em celuloides ou superfícies do tipo, depois fotografadas por uma câmera e editadas, adquirindo movimento e sincronia (som e cores também anos depois).

Não havia muito material disponível sobre animação à mão naquele tempo, mas Disney resolveu pôr a mão na massa: na sua garagem, com um livro sobre animação e uma câmera, ele começou a fazer experimentos.

Empolgado com as animações feitas à mão, Walt Disney resolveu abrir o seu próprio negócio de animação.

Mutt and Jeff (acima) e Koko The Clown (abaixo) foram algumas das inspirações animadas de Walt — ele preferia animações desenhadas ao invés do estilo stop motion

Era o começo da década de 1920, e Walt então criou a sua primeira empresa de animação: a Laugh-O-Gram. Inicialmente ele se juntou ao seu colega de trabalho na Film Ad Co., o cartunista Fred Harman, que ficaria famoso pelos seus quadrinhos Red Ryder. O principal cliente desse novo negócio era o Newman Theater da cidade, e lá foram projetados os primeiros seis curtas animados, que ficaram conhecidos como “Newman’s Laugh-O-Grams” — Disney se baseou em contos de fadas de Esopo modernizados nesses primeiros trabalhos. Em 1921, com o sucesso desses curtas, Walt estabeleceu o Laugh-O-Gram Studio e contratou mais profissionais para trabalhar com ele, como Hugh Harman, Rudolph Ising e o amigo Ub Iwerks.

Basicamente os Laugh-O-Grams eram historinhas baseadas em contos clássicos ou enredos cotidianos cômicos para entreter a população da cidade. Mas esses curtas simples e até meio caseiros não renderam o suficiente para manter o estúdio funcionando. Walt teve a ideia de filmar um projeto mistura de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll , com um mundo fantástico de desenhos animados. Ele seria um pioneiro em misturar animação com pessoas reais (live action), e contratou uma menina de Kansas City chamada Virginia Davis para interpretar Alice, com aprovação dos pais dela. A ideia resultou em Alice’s Wonderland, filme de um rolo (reel) e 12 minutos de duração. Nele é possível ver Walt como ele mesmo no seu estúdio interagindo com a menina e mostrando a ela os personagens animados no início.


Mas a ideia de Alice’s Wonderland veio tarde para salvar a Laugh-O-Gram. Infelizmente por inexperiência, pouco retorno e muitas despesas, Walt encarava um de seus primeiros fracassos no início da carreira: em 1923 ele foi à falência com o seu estúdio. Por um bom tempo viveu de empréstimos de amigos e familiares, e até da boa vontade de estranhos para comer. A família Disney já havia se dispersado, e Walt se viu sozinho nesse período em Kansas City. Nas noites solitárias dentro de seu estúdio, uma de suas poucas companhias, segundo ele, era um rato que sempre rondava o lugar. Walt o considerava um amigo simbólico — e talvez tenha sido uma de suas primeiras inspirações para o personagem Mickey Mouse alguns anos depois (ou foi Walt apenas enfeitando histórias de sua vida, o que era muito comum).

Porém, Disney nunca foi conformista ou de chorar pelos cantos. Um dos mantras do sagitariano era “seguir sempre adiante”, e o fracasso de certa forma o tornava ainda mais persistente na busca de seus objetivos. Assim, confiante no seu potencial e no seu projeto de Alice, Walt Disney vendeu sua câmera, pegou seus poucos pertences, roupas humildes (vestindo um casaco cardigan típico seu), o rolo do filme de Alice (quase todo editado e produzido por ele mesmo), materiais de animação, e partiu num trem rumo a Hollywood, Califórnia em julho de 1923, aos 21 anos. Poucos de seus conhecidos imaginariam que ele estava no caminho certo e perto de começar a fazer história.

No início, ele pensava em ser um diretor, ou começar como qualquer coisa em algum estúdio de cinema. Ninguém quis saber dele para nada. E então ele voltou para as animações.

Felizmente, após várias rejeições, uma distribuidora de Nova York, Margaret Winkler, se interessou muito por Alice’s Wonderland e ofereceu um contrato com Walt para a continuação da série de filmes com a mesma personagem a serem distribuídos nos circuitos comerciais. A atriz mirim Virginia Davis se mudou para Los Angeles com a família para gravar alguns dos filmes seguintes como Alice, sendo depois substituída por Margie Gay, Dawn O’Day (que depois virou estrela sob o nome Anne Shirley) e Lois Hardwick. A série de curtas de Alice terminou em 1927, fechando com 57 curtas no total — destes, 16 são considerados perdidos (principalmente a fase de Margie Gay e Lois Hardwick) e um curta incompleto (Alice’s Auto Race).


Walt viu que não conseguiria lidar com os negócios sozinho, especialmente a parte prática e burocrática, e pediu para que seu irmão Roy viesse para a Califórnia trabalhar com ele. Assim, os irmãos fundaram em 1923 o Disney Brothers Studios, que apenas em 1926 virou de fato o Walt Disney Studio. Roy Disney não viu problema algum no nome, afinal o irmão era o grande idealizador de tudo, enquanto Roy ficava à frente da parte financeira e burocrática do negócio. Walt sempre seria o idealista que sonha alto, ao passo que Roy era o realista que ia atrás dos financiamentos e acordos para tornar os sonhos do irmão em realidade. Apesar de eventuais desentendimentos, a parceria dos irmãos durou décadas, cúmplices e amigos até o fim da vida de Walt.



Walt adotou o seu famoso bigode para parecer mais velho e sério, e talvez para adotar um visual mais “masculino”. Afinal se tratava de um jovem de 20 e poucos anos lidando num ramo de chefões velhos ou durões… Mas até o fim dos anos 40 manteve um estilo casual e boyish, só depois nos anos 50 adotando o estilo mais formal de senhor, ou “tio Walt”, pelo qual hoje ele é mais lembrado.

Em 1925, ainda nos primórdios do estúdio, Walt conheceu Lillian Bounds. Natural do estado de Idaho, e vinda de um background familiar bem diferente de Disney, ela conheceu Walt quando trabalhava no departamento de tintas do estúdio. Eles tiveram um breve namoro e logo se casaram em julho daquele mesmo ano. Lillian ficou casada com Disney até a morte dele em 1966. A relação segundo ela foi feliz de modo geral, mas muitos diriam que era mais uma parceria de cumplicidade e conveniência do que uma relação apaixonada, e nem sempre foi um mar de rosas. Lillian não tinha interesse em cinema ou na cena de Hollywood, preferindo ficar em casa cuidando da casa e da família. Ainda assim, ela não aceitava sempre quieta a natureza controladora de Walt, o que poderia render brigas homéricas entre os dois e noites nas quais ele não dormia em casa, e sim no seu escritório do estúdio (uma rotina recorrente).

A primeira estrela animada da Disney não foi o Mickey, mas sim Oswald, O Coelho Sortudo — patrocinado pelo estúdio Universal. Margaret Winkler passou o contrato com Disney para seu marido, o produtor Charles Mintz. Apesar do sucesso dos desenhos do coelho Oswald entre 1927 e 1928, a relação entre Walt e Mintz foi bem tempestuosa.

Quando tudo parecia promissor, Walt foi traído por Mintz. Como era costume da época, o personagem pertencia ao estúdio distribuidor, no caso a Universal, e não aos criadores. Eles pensaram que poderiam seguir sem Walt, e pegaram para si não só o personagem Oswald, mas junto quase todo o staff de animação dos desenhos. E assim Disney perdeu o seu coelho Oswald.

Mas seria Walt a rir por último não muito tempo depois. Ub Iwerks (que tinha ido para LA em 1924 trabalhar para Disney) permaneceu ao lado de Walt depois da treta com a Universal, e os dois criaram o camundongo mais famoso da história que dispensa apresentações: Mickey Mouse.

Por pouco o rato não se chamou Mortimer. Das muitas versões sobre a origem do nome, a mais comum é que a esposa de Walt, Lillian, deu a ideia do nome Mickey. Anos depois Mortimer viraria o nome do rival de Mickey, em histórias onde os dois disputam a atenção de Minnie.

É errado dizer que Walt Disney não era um bom desenhista. Sim, com os anos ele pararia de desenhar quase que completamente para ficar apenas no controle criativo das produções, o que lhe foi conveniente de certa forma. Foi de fato Ub Iwerks quem criou o desenho de Mickey, mas foi Disney que deu vida e alma para o personagem… E ainda deu a Mickey a sua voz. Na ausência de um dublador que o satisfizesse, Walt fez a voz do Mickey até 1947. Pode-se ver um pouco desse seu trabalho de dublagem no link abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=q1OziHxAl_A&ab_channel=youngwidow2007
Sim, Disney se aproveitou muito do seu nome em destaque para tomar os créditos de tudo feito no seu estúdio para si — enquanto os animadores e todo o pessoal dos bastidores ficavam em segundo plano. Mas, o fato é que sem a mente e a visão artística de Walt por trás dos desenhos, eles não teriam sido metade do que se tornaram. E de algumas décadas para cá, as mentes criativas dos bastidores têm ganhado mais crédito e reconhecimento.
A amizade entre Walt e Ub foi se deteriorando após o sucesso de Mickey e cia, pois Walt se tornava mais dominador e Iwerks não se sentia de fato valorizado. Certa vez uma menina pediu pessoalmente para Walt um desenho autografado de Mickey. Walt pediu que Iwerks desenhasse o rato, e ele só iria autografar o desenho no final. Ub ficou bravo e disse: “desenhe você o seu Mickey”. E saiu.

Os primeiros desenhos de Mickey foram Plane Crazy e The Gallopin’ Gaucho, ambos de 1928. Os dois projetos falharam em conseguir distribuição. Mas depois de assistir ao filme O Cantor de Jazz, Walt e seus amigos tiveram a ideia de adicionar som aos desenhos, e dessa ideia nasceu Steamboat Willie, não o primeiro de todos mas certamente um curta pioneiro na animação com som sincronizado e também na produção de uma trilha sonora para o desenho. Para pagar uma tecnologia de som, no caso o sistema Cinephone, e também arcar com todos os custos envolvidos, Disney se viu obrigado a vender o seu amado carro da época, um Moon Roadster modelo 1927. Mas valeu a pena pois as primeiras exibições de Steamboat Willie fascinaram suas plateias.

Hoje Steamboat Willie pode ser visto como uma animação primitiva ou datada, mas foi uma verdadeira revolução e um grande sucesso da época, sendo lançado oficialmente nos cinemas em 18 de novembro de 1928. O som era o futuro da indústria do cinema, e Walt seguiu a ideia certa no momento certo. Ele seria visionário e pioneiro inúmeras vezes durante a sua carreira. E mesmo que não necessariamente o primeiro de todos em determinada inventividade, Walt usaria a novidade a seu favor de forma eficiente, popular e de forma nunca antes realizada.

Nos primeiros desenhos, Mickey era mais travesso, escrachado e politicamente incorreto. Mas com o passar dos anos, o personagem se tornou o bom moço certinho que vemos hoje em dia. O personagem virou um alter ego de Walt Disney, tão seu que poderia dizer facilmente “Mickey faria isso”, ou “Mickey não faria isso” nas reuniões criativas dos curtas. E perguntado sobre seu sentimento pelo rato, Walt disse que amava mais o Mickey do que qualquer mulher que ele já tinha conhecido.

A partir de 1929, os estúdios Disney criaram a série Silly Symphonies, que perdurou por dez anos, até 1939. Num total de 75 curtas, os estúdios produziram os mais diversos tipos de curtas-metragens animados, que diferente dos curtas de Mickey e sua turma, não tinham continuidade ou ordem cronológica entre si. Através desses pequenos filmes, os animadores foram se especializando cada vez mais, experimentando novas técnicas e novas ideias a todo momento. Seriam então um prelúdio do que viria tempos depois nos longa metragens como Branca de Neve e Os Sete Anões em 1937.
Para poupar trabalho individual e agilizar as produções, a partir dessa época o estúdio estabeleceu divisões de trabalho entre os desenhistas: os artistas principais fariam as partes-chave dos curtas, enquanto os desenhistas iniciantes fariam os desenhos complementares das cenas e dos personagens (por isso eram chamados de in-betweeners, responsáveis pelos intervalos entre as sequências principais).

“A comédia adequada para a tela é visual. Os filmes tentam arrancar muitas risadas dos diálogos. Usamos pantomima, não piadinhas. A representação das sensações humanas por objetos inanimados, como pás a vapor e cadeiras de balanço, nunca deixam de provocar risos. A angústia humana exemplificada por animais é infalível. Um pássaro que pula após engolir um gafanhoto é natural. A surpresa é sempre provocativa.” (W.D.)
Como são muitos curtas da série Silly Symphonies, vamos mencionar apenas alguns dos mais marcantes:









O Pato Donald surgiu como um antagonista para o personagem Mickey, que já estava ficando desgastado sem outros amigos nas histórias. A primeira aparição de Donald foi em 1934 no curta A Galinha Espertalhona ( The Wise Little Hen). Com o tempo o personagem ganhou mais destaque e roubou a cena de Mickey em muitos momentos.


O Pateta também veio como um amigo atrapalhado de Mickey para apelos cômicos, passando de mero coadjuvante para estrela solo de filmes a partir de 1939 com Goofy and Wilbur. Pateta fez muito sucesso com o tempo, a ponto de ter uma série de TV ( A Turma do Pateta, original Goof Troop) e ser o primeiro personagem Disney a ganhar um filme só seu em 1995 com Pateta: O Filme ( A Goofy Movie).


Walt era extremamente exigente com seus funcionários. Nos anos 1930 o estúdio ainda era menor e tinha uma atmosfera amigável e familiar. Nesse período que Walt contratou alguns dos animadores históricos que viriam a ser os “Nine Old Men” (os animadores mais leais a Walt). Disney fazia questão de ser chamado de “Walt” por todos, nada de “Mr. Disney”. Mas raramente elogiava o trabalho dos artistas, no máximo dizendo coisas como “isso vai funcionar”. Se falava bem de alguém, era indiretamente para outras pessoas, e só pelo boca a boca que um artista descobria que Walt o havia elogiado.

Ainda assim, as reuniões podiam ser bastante difíceis e tensas. Walt fumava como uma chaminé, o que o fazia ter uma tosse tão característica que podia ser ouvida logo nos corredores quando estava se aproximando. Um defeito em particular no ambiente de trabalho era o fato de Walt quase nunca elogiar o trabalho dos funcionários diretamente, mas sempre apontar os defeitos ou falhas na produção dos desenhos. Outro problema era Disney ter boas ideias mas sempre esperar que os outros alcançassem seus ideais de perfeição ou que o entendessem total e imediatamente, mesmo sem dizer uma palavra ou explicar propriamente. Ele podia não se expressar com palavras, mas sua arcada de sobrancelha e dedos batucando nas mesas e cadeiras quando descontente tornaram-se históricos. Ele também não permitia palavrões dentro do estúdio, e a partir de 1957 proibiu que os funcionários tivessem bigode (regra que só caiu nos anos 2000).

Talvez fosse uma tática de chefe ser assim, afinal Disney era bem perspicaz e um excelente observador e entendedor das pessoas. Por meios nada ortodoxos, Walt criou uma aura onipotente ao redor de si. E também estimulava nos seus trabalhadores a vontade de surpreendê-lo sempre com as melhores ideias, os melhores desenhos. Alguns dos animadores o lembram como um ditador, outros como um chefe estimulante, enfim. Bem ou mal, os resultados desse ambiente criativo se mostraram excelentes.


Em 1931, Walt Disney sofreu um breakdown e tirou férias curtas do trabalho com sua esposa Lillian. Ele foi a vida inteira um workaholic, tão entusiasmado que era com os seus projetos, ele poderia passar noites em claro trabalhando ou pensando em suas criações, às vezes nem voltando para casa. E em casa, o casal Disney passava por problemas para ter filhos: Lillian sofreu dois abortos. Mas além do trabalho em excesso e dos problemas de Lillian para engravidar, Walt sofreu mais revezes com parcerias infelizes nos negócios.

A parceria com a Cinephone durou pouco tempo. Em certo momento por volta de 1930 Pat Powers, o distribuidor dos primeiros curtas sonoros do estúdio, se recusou a liberar mais dinheiro para Disney e resolveu tomar Ub Iwerks para si, acreditando que o talento do estúdio estava em Iwerks e não em Disney. Carl Stalling, um compositor renomado de desenhos animados como Looney Tunes e Merrie Melodies na Warner, trabalhou na Disney nessa época e também aproveitou a crise para sair do estúdio, achando que sem Iwerks, um dos animadores principais, o negócio não iria adiante.
Ub Iwerks deixou o estúdio e criou o seu próprio, o The Iwerks Studio. Lá o animador criou tipos como Flip O Sapo, Willie Whooper e as séries animadas ComiColor Cartoons e Merry Mannequins. Mas apesar de seu talento, Iwerks não bateu o sucesso de Disney e o estúdio acabou encerrando suas atividades- muitos diziam que ele era um excelente desenhista, mas não tinha senso de humor.
Iwerks voltaria anos depois, já 1940, para trabalhar para Disney de novo, mas os anos de amizade em Kansas City ficaram para trás de vez e a relação dos dois se resumiu a partir de então ao profissional. Iwerks também desenvolveu diversos projetos para a Disneyland nos anos 50. Sua mente criativa era tão à frente do tempo quanto a de Walt, o que ajudou no desenvolvimento de muitas tecnologias de animação e entretenimento, como por exemplo uma engenhosa câmera de 360 graus. Iwerks também contribuiu no aprimoramento das cenas de live-action com desenhos animados nos anos 40, e nos anos 60 trouxe a ideia da animação estilo xerox usada em 101 Dálmatas.

Em outubro de 1931, por conta de todo o stress causado pela treta com Pat Powers e também pelo excesso de trabalho, Walt Disney sofreu um colapso nervoso sério (breakdown), sem conseguir trabalhar ou articular nada, com sérias flutuações de humor e crises de choro. Para se recuperar, Disney e sua esposa Lillian saíram de viagem para Cuba e também fizeram um cruzeiro pelo Panamá.
Devido aos rompimentos profissionais amargos com pessoas nas quais confiava, Walt foi com o tempo se tornando desconfiado, mais fechado, ríspido e às vezes tirânico nos negócios. Não era só questão de dinheiro, status ou poder, mas sim uma questão pessoal. Se Walt se sentisse traído ou passado para trás, a mágoa poderia ser mortal. O humor dele também era flutuante, desde a euforia infantil até acessos repentinos de raiva. Ele tinha uma natureza apaixonada e intensa, por vezes infantil. Não necessariamente um otimista, mas Disney tinha uma incansável disposição nos seus projetos, digna de um garoto que se recusava a crescer.

Depois do fim da relação com a Powers Cinephone, o estúdio Disney fechou contrato com a Columbia Pictures por um breve período. Mesmo com o sucesso do Mickey, Walt e sua trupe ainda eram vistos com olhares tortos, pois desenhos animados eram considerados bobagens sem futuro ou entretenimento barato. Louis B. Mayer da MGM rejeitou assinar com Disney pois achava aquilo tudo uma porcaria. Até Harry Cohn, da Columbia, não tratou os desenhos de Disney com o devido valor durante o contrato.
O diretor de cinema Frank Capra relembrou em sua autobiografia O Nome Acima do Título o momento em que conheceu Walt Disney:
(…) “Frank, apresento-lhe Walt…”. Não consegui entender o último nome do jovem esquelético, com ar de esfomeado e barba de dois dias, que me apresentaram. Lembro-me que trazia na cabeça um boné e o levantou dizendo: “Saudações!”.

(…) Quando as primeiras imagens do filme [um curta de Mickey] apareceram na tela, bem depressa despertei, com os olhos arregalados de espanto. Aquilo era uma coisa completamente nova — um desenho animado! Um rato impertinente e vivaz, de voz estridente, parodiava um recital de piano, martelando as teclas com as mãos, com os pés, com o nariz, até com a cauda. A imagem e o som estavam perfeitamente sincronizados. Os técnicos da minha equipe, exaustos depois de um dia de trabalho, agora morriam de rir. Assistíamos sem dúvida a um divertimento fabuloso e completamente inovador. Se bem me lembro, o desenho animado durava apenas quatro ou cinco minutos. Mas quando acabou, esquecera-me completamente do meu cansaço e, dirigindo-me ao homem com ar de mendigo que me fora apresentado, disparei, uma após a outra, um sem número de perguntas entusiastas. Respondeu-me de uma forma bastante modesta:
“Sim, trabalhei em animação em Chicago… Não, esta personagem do camundongo é uma criação nova… Chamo-lhe Mickey Mouse. Não, o rato fala com a minha voz… Não, gravamos o som primeiro e só depois metemos a animação, de forma a desenho e som ficarem perfeitamente sincronizados… Sim, gostaria muito que o mostrasse a Harry Cohn…”

Dito e feito. Cohn de início achou uma perda de tempo, mas assinou com Disney. Capra comenta que Cohn não soube lidar com Walt e perdeu “a maior mina de ouro de Hollywood”.

Fazendo um paralelo, podemos dizer que Capra e Disney tinham coisas em comum nos seus filmes e ideias. Ambos eram homens patriotas e conservadores pessoalmente; em suas criações tocam os corações de todo o público, enaltecendo os sonhos, a alegria, o riso, a simplicidade, a compaixão e a fraternidade.

Insatisfeito com a Columbia, Disney pouco depois arranjou um novo negócio com a United Artists em 1932, fundada por Chaplin e amigos anos antes.
E então 1932 já foi um ano mais feliz para o estúdio e suas animações. Disney recebeu dois Oscars: um por Melhor Curta de Animação por Flores e Árvores, na inauguração da categoria; e mais um prêmio especial pela criação do camundongo Mickey, o que de fato foi um marco na história do cinema e dos desenhos animados. Por toda a década, os estúdios venceram prêmios pelos seus curta metragens. Walt se tornou o produtor cinematográfico com mais estatuetas (26 no total, e 59 indicações), recorde até hoje mantido.
Mas por incrível que pareça, a categoria de Melhor Filme de Animação só foi criada mesmo em 2001, sendo Shrek da DreamWorks o primeiro desenho animado a vencer na categoria. Walt Disney venceu mais por Melhor Curta, Melhor Documentário, Melhor Canção e alguns Honorários especiais.

A primeira filha do casal Disney, Diane, nasceu em 18 de dezembro de 1933. Walt ficou encantado em ser pai e quis ter ainda mais filhos, mas Lillian foi desaconselhada a passar por mais uma gravidez. Então o casal optou por adotar uma menina chamada Sharon em 1936. Disney sempre fez questão de manter as filhas longe das câmeras e da imprensa, com o fim de preservar a sua família.


Para relaxar, Walt e seus funcionários eventualmente praticavam esportes ou atividades recreativas do tipo para desestressar. Disney começou a praticar esportes, em especial o polo, porque todos os outros como boxe e golfe não deram muito certo. Longe de ser um atleta e bem desajeitado, Walt sofreu um acidente de polo que deixou uma lesão de vida inteira em suas vértebras.


Walt, quando não carrasco no estúdio, era em geral amigável com todo mundo, mas tinha poucos amigos na vida pessoal, e quando os tinha não conseguia manter muito contato ou socializar, pois estava sempre ocupado trabalhando ou pensando em projetos futuros. Apesar de manter uma aparência de homem feliz e de família, Walt era em geral solitário e passava boa parte do tempo sozinho no seu escritório ou andando sem rumo, fumando, imerso em seus pensamentos e fantasias. Preferia a companhia de homens e supostamente disse que não queria que a Disney fosse chefiada um dia por uma mulher. Para sua tristeza no além, no final de 2021 a primeira mulher presidente da Disney (Susan Arnold) foi eleita, em 98 anos de companhia!
Mas sexismos à parte, Disney deu espaço para mulheres artistas dentro de sua empresa, e em 1959 Walt disse:
“As mulheres são as melhores juízas de qualquer coisa que produzimos. O gosto delas é muito importante. Elas são as frequentadoras do teatro, são elas que arrastam os homens. Se as mulheres gostam, que se danem os homens.”

Nessa época, até meados dos anos 40, mesmo não mais desenhando, Disney tomava conta e supervisionava cada detalhe dos filmes produzidos no estúdio e todos os outros produtos relacionados com os personagens, como brinquedos, quadrinhos, livros, etc.

BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES: o início da Era de Ouro da Disney clássica

A partir de 1934, já deveras cansado de fazer apenas curtas, Walt começou a pensar em um novo e mais ambicioso projeto: um desenho animado em longa-metragem. Disney sempre teve um fraco por contos de fadas, como dos Irmãos Grimm, e aos 15 anos ele ficou fascinado com uma versão para os cinemas de 1916 de Branca de Neve, estrelada pela hoje esquecida Marguerite Clark, uma atriz tão popular quanto Mary Pickford no seu auge, e assim como Pickford, especialista em retratar crianças ingênuas em histórias açucaradas. Às vezes a memória de Disney falhava e ele pensava ter se tratado de uma peça de teatro ao invés de um filme.

Walt nunca esqueceu a experiência fílmica e o impacto que deixou nele, e assim ele bateu o martelo: Branca de Neve e Os Sete Anões seria o primeiro filme longo do estúdio. Seria também a primeira animação de longa-metragem dos Estados Unidos, totalmente colorido em Technicolor.



No decorrer daquele ano de 1934, começaram os primeiros esboços do projeto. Walt tinha uma fama mítica de ótimo ator e excelente contador de histórias — e numa noite ele chamou seu staff para uma apresentação das suas ideias para Branca de Neve. Walt encenou por horas todas as cenas que ele tinha em mente para o filme, contando detalhe por detalhe, representando todos os papéis da história ele mesmo na frente de um grupo emocionado e completamente envolvido.

Hoje, assistindo ao filme, mesmo mais de 80 anos depois de sua estreia, constatamos que Branca de Neve é uma animação de excelente qualidade que não envelhece, e para os desavisados nem parece um filme tão antigo. Mas nos anos 30 era um projeto impensável até então, e Disney foi várias vezes dissuadido de continuar com a ideia. Muitos colegas de trabalho diziam que era uma loucura, a maioria das pessoas duvidava que um desenho animado de longa duração atrairia público ou daria dinheiro. Seu irmão Roy tentou convencer Walt a desistir da ideia, e os cochichos no estúdio eram que Disney devia focar apenas em curtas. Até sua mulher Lillian desacreditou o projeto, e nesse tempo o casal Disney viveu uma crise que quase culminou em divórcio.

Para evitar um novo breakdown como o que teve em 1931, e também para ir atrás de novas ideias e fontes de inspiração, Walt levou a esposa e alguns colegas para uma turnê pela Europa no verão de 1935. A viagem foi muito frutífera: Disney e sua comitiva trouxeram uma infinidade de livros ilustrados e material possível para adaptação. Essa biblioteca serviu de fonte de inspiração para os animadores. Mais: Disney promoveu a partir de 1932 aulas de arte dentro do seu estúdio para seus funcionários, por não estar satisfeito com cursos fora dali e também porque queria que seus empregados refinassem seus estilos o melhor possível — ideia essa que elevou a qualidade artística das animações a um nível sem precedentes.

O filme de Branca de Neve foi resultado de um esforço quase sobre-humano dos animadores, que se estendeu de 1934 até final de 1937, pouco antes da première. Por esse período o projeto ficou conhecido como “Disney’s Folly” (a loucura de Disney). Não eram apenas força de vontade e motivação artística que os moviam, mas Walt sabia que o estúdio não teria muito futuro se continuasse apenas com curtas. Aquela era a chance de uma vida, e Disney apostou literalmente todas as suas fichas: o estúdio investiu todo o seu dinheiro, fez uma sucessão de empréstimos, quase tudo de Walt estava pendurado, até a sua casa estava na hipoteca. Enfim, era tudo ou nada.


O filme estreou no dia 21 de dezembro de 1937. Para o alívio e alegria geral, Branca de Neve foi um enorme sucesso — um verdadeiro alento para os americanos recém-saídos da Grande Depressão, de todas as idades. Até hoje a história é cativante, cheia de humor e emoção atemporais. Durante a estreia, Clark Gable e Carole Lombard choraram. John Barrymore estava arrepiado com as sequências soturnas da Rainha Má transformada em Bruxa. E Disney, depois de ataques de ansiedade, dava a última risada: sua dita loucura provou ser uma mina de ouro.

https://www.youtube.com/watch?v=q1OziHxAl_A&ab_channel=youngwidow2007


O impacto do filme na indústria se sente em vários filmes feitos depois, por exemplo O Pássaro Azul, até Rebecca de Hitchcock. A MGM resolveu investir em O Mágico de Oz, lançado em 1939, justamente pelo sucesso de uma história de apelo infantil como Branca de Neve com o público.

Adriana Caselotti foi escolhida para dar voz à Branca de Neve, depois de centenas de candidatas serem testadas (Deanna Durbin, estrela da Universal, foi uma das rejeitadas). Ela assinou um contrato de exclusividade com Disney, o que limitou sua carreira. Walt não permitia que ela fizesse muitas coisas, para que a magia por trás da Branca de Neve não se perdesse para o público. Já envelhecida para fazer performances da princesa, Adriana investiu em outras coisas, como imóveis e mercado de ações, além de cantar ópera esporadicamente.


A animação é permeada de referências de cinema. Walt mandava os desenhistas assistirem a clássicos do cinema mudo, ou também qualquer filme no cinema que lhes desse ideias eles estariam vendo e prestando atenção nos detalhes, nos enredos e na condução dos mesmos.






Não surpreenderia se Greta Garbo (acima) e Marlene Dietrich (abaixo) também tivessem inspirado os looks da vilã. Os desenhistas viam filmes no cinema à exaustão para possíveis ideias de animação

No caso da Branca de Neve, as inspirações foram muitas. Além de Marge Champion, que serviu de modelo oficial, os animadores também buscaram inspiração em artistas da época.



Pela importância do filme para a indústria, Disney recebeu um Oscar especial e sete pequenos prêmios para representar os anões do filme. Os prêmios foram entregues pela atriz Shirley Temple na cerimônia de 1939. No palco, Disney disse que estava tão feliz que poderia “explodir”. Shirley, ingenuamente, disse: “Oh não, Sr. Disney, por favor não faça isso”.


O sucesso de Snow White levou o estúdio aos céus como um foguete. Choveram elogios, prêmios e muito dinheiro. Em pouco tempo a empresa conseguiu liquidar as dívidas e voltar aos trilhos. Mas Walt, como de costume, queria mais: seus filmes seguintes seriam tão ambiciosos ou mais ainda do que Branca de Neve. E mais: ele queria construir um novo estúdio Disney.
A alegria dessa fase, porém, foi interrompida. Sua mãe Flora faleceu em 1938. Ela morreu intoxicada com um vazamento fatal do sistema de aquecimento na casa que Walt e Roy haviam comprado para seus pais. O pai Elias ainda conseguiu se recuperar da intoxicação, mas Flora não resistiu.

Acredita-se que Walt viveu atormentado pela ideia de ter sido indiretamente responsável pela morte da mãe. Isso também promoveu a ideia de que os filmes Disney quase nunca mostram mães nos contextos familiares justamente por Walt ter perdido a sua mãe de uma forma traumática. É curioso notar isso, mas não prova de fato ser a razão da ausência das mães nas histórias. Os filmes Disney no fim das contas sempre lidam com histórias de amadurecimento: superar as dificuldades e perdas no meio do caminho, seguir os seus sonhos e manter se fiel a si mesmo, ainda que confronte o status quo. Para no fim crescer sem deixar morrer a criança interior — algo simbolizado pelo próprio Walt Disney na sua trajetória.
FIM DA ERA DE OURO E OS ANOS IMPACIENTES: FLOPS, GREVE, GUERRA, AMÉRICA DO SUL

Era um novo momento na Disney. Os curtas deixavam de ser a atração principal, e assim a série Silly Symphonies chegou ao fim em 1939. Depois de Branca de Neve, Disney queria lançar Bambi como o seu segundo longa-metragem. No entanto, pelas dificuldades em desenhar animais de forma realista, o estúdio optou por adiar Bambi (que continuou sua pré-produção em off) e no lugar avançaram os trabalhos de Pinocchio. Alice in Wonderland e Peter Pan também foram cogitados nessa época, mas só viriam a ser realizados nos anos 50.

PINÓQUIO (1940)

Os esforços artísticos em Pinóquio foram ainda mais intensos e rebuscados do que em Branca de Neve. Porém o romance italiano de Carlo Collodi se mostrou bem mais desafiador de adaptar do que a simples história de Branca de Neve. A história do boneco de madeira é quase uma odisseia surreal de acontecimentos e aventuras insanas: fugir de um ventríloquo perverso, escapar de uma ilha onde garotos maus viram burros, e resgatar Gepeto e amigos de dentro de uma baleia.




A crítica em geral foi favorável a Pinóquio, alguns o acharam até superior artisticamente a Snow White. Mas por conta da Segunda Guerra Mundial, o filme flopou durante suas primeiras exibições nos cinemas. Em retrospecto, além do desempenho fraco na bilheteria, Walt ficou insatisfeito com o resultado de Pinóquio. “Faltou algo de intangível no filme”, refletiu mais tarde. Felizmente, com os relançamentos do filme ao longo das décadas, o desenho conseguiu retornar com muito lucro e hoje é considerado um clássico incontestável da Disney.
Bom observar também que o filme, bastante moralista, tem passagens sombrias e até “pesadas”. Hoje em dia as sequências das crianças bebendo, jogando e fumando na Ilha dos Prazeres seriam impensáveis, por exemplo.

FANTASIA (1940)

A ideia inicial era só fazer um curta de Mickey como “o aprendiz de feiticeiro”, baseado na composição musical de Paul Dukas ( The Sorcerer’s Apprentice). O famoso maestro Leopold Stokowski ficou fascinado com a ideia quando Disney contou a ele durante um jantar. Stokowski se propôs a conduzir a música do filme, e dessa conversa foi nascendo a ideia de Fantasia.

O investimento em “ O Aprendiz de Feiticeiro” foi ficando tão dispendioso que o estúdio achou melhor produzir logo de uma vez um longa metragem de vários segmentos independentes, cada um com uma música clássica diferente. Antes do nome Fantasia surgir ao longo da produção, o filme era referido como “the concert feature” (o longa do concerto).

O projeto de reunir desenho animado com música clássica foi certamente a ideia mais inovadora e ambiciosa da história da Disney, consequentemente a mais arriscada de todas. Mais do que isso: Walt queria transformar o ato de ir ao cinema numa experiência única. O estúdio idealizou um sistema pioneiro de som chamado Fantasound, que funcionaria como o atual sistema Surround (estéreo), com o propósito de dar ao público a ideia de estar mesmo em um concerto de música. Esse sistema de som faria os espectadores ouvirem os instrumentos da orquestra de diferentes distâncias e em diferentes intensidades, assim como a acústica de um concerto musical de verdade. A plateia também iria receber um programa com uma descrição das músicas e sequências do filme musical. Walt estava tão empolgado que queria tornar Fantasia uma atração contínua nos cinemas, todo ano acrescentando novas passagens e peças musicais, para tornar a experiência fílmica ao público única e inesquecível.

Mas apesar das ótimas ideias, a recepção não foi das melhores. O conceito de Fantasia foi melhor recebido nas salas de cidades grandes como Los Angeles e Nova York, enquanto que flopou nas cidades menores. Sobre o sistema de som, a RKO não quis investir no Fantasound, o que fez Disney usar a tecnologia por conta própria em apenas 12 salas de cinema.

As críticas foram em maior parte positivas e entusiastas. A recepção negativa veio mais da classe musical conservadora que não gostou da forma com que Disney conduziu as músicas. O fracasso comercial de Fantasia foi uma das maiores frustrações da carreira de Walt. Com os relançamentos do filme ao longo dos anos, a obra conquistou novas gerações, arrecadou bastante lucro e enfim ganhou o reconhecimento que merece.

Aproveitando o gancho: Walt não era propriamente um erudito, aliás por muitos era considerado um filisteu simplório, sem bom gosto. Ainda que tivesse ficado rico e poderoso, Disney sempre manteve suas raízes simples do interior. Em suas viagens pelo mundo, ele levaria na bagagem latas de chilli ou feijão (suas comidas favoritas). Suas residências, sendo consideradas cafonas ou não, eram confortáveis e espaçosas mas nunca ostensivas. Até os anos 50 ele se vestia de forma bastante casual para um magnata de Hollywood, e mesmo depois nada muito extravagante, com roupas que ele mandava fazer, nunca de grifes.
De qualquer forma, Walt Disney acreditava no poder das artes visuais assim como na arte da Música. Ele sempre fez doações generosas para instituições de Artes durante a sua vida, além de outras causas em geral.
Em 1999 foi lançada uma continuação do clássico: Fantasia 2000.
A GREVE DO ESTÚDIO (1941)

A ideia do novo estúdio em Burbank, na South Buena Vista Street, se tornou uma faca de dois gumes. Foi um projeto novamente caro a ponto de colocar o estúdio mais uma vez em situação de risco com os bancos e cia. A guerra estava cada vez mais crítica e seus efeitos no mundo impossíveis de ser ignorados. Para piorar, nem Pinóquio nem Fantasia conseguiram gerar retorno suficiente para Disney, que se viu obrigado a cortar despesas e salários. Nessa época o estúdio também passou pela primeira vez a oferecer ações dentro do mercado da bolsa de valores.
Walt idealizou o estúdio novo não apenas pensando no próprio ego, mas também no bem-estar de seus trabalhadores ao criar um ambiente estimulante de trabalho, nos mínimos detalhes. Como um pai, ele pensava que estava fazendo o melhor para seus filhos, sem se dar conta do que esses “filhos” realmente queriam ou precisavam. O estúdio de Burbank parecia um campus universitário: descolado, aberto, imenso e aparentemente amigável. Entretanto, justamente por ser enorme e um tanto impessoal, tirou muito da proximidade informal entre as pessoas e quebrou a atmosfera casual que havia no antigo estúdio da Hyperion. Pior: aumentou a desigualdade entre os trabalhadores. Enquanto poucos tinham muitas regalias, a maioria ganhava salários baixos por muitas horas de trabalho e nenhum acesso às áreas VIPs da empresa. No auge de sua falta de noção da realidade, Walt ameaçou os grevistas de barrá-los para sempre de sua piscina particular. Seu discurso elitista só aumentou a ira dos trabalhadores da greve de 1941.

Disney não era bem um Tio Patinhas, aliás o pessoal do estúdio era um dos mais bem pagos de Hollywood. O problema foi mesmo a desigualdade nos salários e benefícios, e as hierarquias criadas dentro da empresa. Walt tinha a prática de dar bônus aos trabalhadores que tivessem as melhores ideias para os filmes. Com as crises financeiras e flop dos dois últimos filmes, ele cortou bônus e salários. Com os lucros anteriores de Branca de Neve, ao invés de aumentar os salários igualmente ele investiu em um novo estúdio e só deu benefícios a uma parcela minúscula — aqueles que ele pensava terem se destacado mais. Aos outros, através de uma abordagem meritocrática e psicológica, ele disse que se melhorassem no trabalho, seriam igualmente promovidos. Ele achava que dando muita colher de chá, a qualidade do trabalho do seu staff diminuiria. Dessa forma ele foi se tornando uma espécie de déspota.
Walt caiu do cavalo, pois sua condução equivocada dos negócios gerou revolta quase geral entre os trabalhadores. Em 28 de maio de 1941, a greve foi declarada.


Sobre a greve do estúdio em si, houve erros dos dois lados. E foi muito mais do que uma questão de dinheiro e direitos trabalhistas. As questões pessoais entre os envolvidos só deixou a crise ainda mais agridoce para todos.
Walt errou na sua insensibilidade para com os trabalhadores. Ao invés de incentivar um trabalho melhor, ele só criou disputas internas e insatisfação, promovendo competição e um sentimento de hostilidade entre os animadores, que começaram a criar rixas entre si. Durante a greve ele se manteve irredutível, especialmente em aceitar que a Disney se submetesse ao Sindicato dos Cartunistas, o Screen Cartoonist’s Guild (SCG). Sua teimosia em recusar a sindicalização se deu por ele não querer diálogo com lideranças de esquerda, e obviamente, como um empresário capitalista, para manter o poder total sobre sua empresa sem interferências externas. É compreensível que Walt quisesse um ambiente familiar sem influências externas, mas ele não soube gerir esse ambiente de forma igualitária e só teve prejuízos com suas atitudes de déspota.
O outro lado também teve questões problemáticas. Disney às vezes era intimidado e ofendido na frente das filhas pequenas quando passava pelo estúdio de carro. Piquetes eram formados nos prédios e entradas, e muitos trabalhadores não aderentes à greve eram vítimas de perseguição e boicote. No auge da greve, bonecos de Walt chegaram a ser colocados numa guilhotina.
Herbert Sorrell, então líder do sindicato dos cartunistas, usou manobras grosseiras de intimidação mais por sede de poder do que progressismo, dizendo que ia reduzir Disney a pó. Isso não aconteceu, mas depois de semanas Walt enfim cedeu ao sindicato no seu estúdio, que permanece até os dias de hoje sindicalizado.

Por mais conservador que fosse politicamente, Disney não misturava as estações durante o trabalho. Se ele acreditava no trabalho de alguém, no seu potencial artístico, não importava a posição política. E havia trabalhadores de esquerda no estúdio, antes e depois da greve. Se ele chegou a denunciar participantes da greve na época do Macarthismo, acredita-se que foi mais ressentimento pessoal do que só intolerância política. No fim ele era um patriota que seguia a paranoia da época, achando que estava defendendo seu país e suas ideias. E infelizmente usou sua influência e seu poder para destruir carreiras. Um dos diretores de arte de Fantasia, Art Heinemann, participou da greve e teve o seu nome retirado dos créditos do filme.
Com a profundidade de um pires, para Disney foi mais conveniente considerar a greve como apenas um “movimento comunista”. Depois da greve em diante, Walt se tornou cada vez mais conservador politicamente e com um desprezo até patológico por comunistas (ou melhor, o que o remetesse a ideia de “comunismo”, isto é, ameaças ao american way of life), participando de grupos reacionários como a Motion Picture Alliance para a Preservação dos Ideais Americanos ao lado de outras figuras históricas do conservadorismo como o astro John Wayne e a escritora Ayn Rand.
Ele nunca perdoou aqueles trabalhadores grevistas, e de certa forma, teve dificuldades em confiar nas pessoas em geral depois. O estúdio nunca mais teve a atmosfera familiar e amigável de antes, tornando-se um ambiente de trabalho mais tenso e impessoal.

Existe o rumor de que Walt Disney também serviu (alegadamente) para o FBI dos anos 40 até a sua morte em 1966, como uma espécie de agente especial/informante secreto, mas não há provas concretas já que apenas uma ínfima parte dos arquivos confidenciais veio à tona (o resto permanece censurad0). Acredita-se que o FBI também ajudou Disney a obter a licença para construir a Disneyland nos anos 50.


Babbitt, um de seus nêmesis, ainda ajudou a difundir a ideia de que Disney era antissemita, uma falácia que até hoje persiste mas sem provas concretas. Meryl Streep há poucos anos se referiu à Motion Picture Alliance como antissemita, e de fato havia integrantes radicais ali, mas juntou Disney no combo de seu discurso de telão erroneamente.
No máximo, Walt tinha ideias antiquadas e estereotipadas, vide seu retrato depreciativo de judeus nos filmes e em falas suas, mas quem o conheceu nunca o viu sendo intolerante ou preconceituoso com quem quer que fosse. Disney, como muitos de sua época, sofria de certa insensibilidade social, isto é, não era preconceituoso diretamente mas de certa forma reforçava estereótipos e ideias antigas que no fim perpetuavam o status quo e as desigualdades. Paradoxalmente, muitos de seus filmes mostravam a trajetória de heróis excluídos ou marginais em busca de um lugar ao sol.
O fato de ter recebido a diretora alemã pró-Hitler Leni Riefenstahl (do filme documental Olympia de 1938) no estúdio para uma tour só reforçou a ideia de Walt ser simpatizante do Nazismo. Novamente, um equívoco. Muitos acreditam que Disney manteve contato com alemães (até simpatizantes do Nazismo) apenas para que conseguisse manter seus filmes em circulação na Europa. À parte disso, Disney estava interessado em Leni como artista, e nesse aspecto ele ignorava o espectro político da pessoa. Com a exceção de suas paranoias anticomunistas movidas por ressentimento e ufanismo, Walt sabia separar as coisas na hora do seu processo criativo.
O que eu gostaria de deixar claro é que, apesar de suas relações casuais com pessoas antissemitas, não há nada que comprove que Walt Disney era de fato antissemita. Isso já foi negado por amigos, familiares e conhecidos de Walt diversas vezes, e particularmente acho muito raso reduzir todo o legado do homem em uma suposição depreciativa que no fim em nada acrescenta.
1941 ainda reservou um outro baque para Walt Disney: seu pai Elias faleceu em setembro, enquanto Disney e seus colegas estavam de viagem pela América do Sul.
VOANDO PARA O RIO: Saludos Amigos e Você Já Foi À Bahia?

Enfim, depois de tanta treta, perdas e controvérsia, vamos falar agora de um período feliz e colorido dessa época: a viagem de Disney para a América do Sul no segundo semestre de 1941.

Walt aceitou o pedido de Nelson Rockfeller naquele ano de 1941 para fazer uma turnê pelos países latino-americanos. A viagem foi idealizada pelos EUA com o fim de promover a política da boa vizinhança na América, ainda mais naqueles idos de Segunda Guerra Mundial. Com o Brasil, por exemplo, era interessante manter boas relações não só por fins econômicos e comerciais, mas porque Getúlio Vargas mantinha uma relação cordial até demais com o nazismo de Hitler, além do fato de promover um regime ditatorial ele mesmo no país, o Estado Novo.
A viagem também serviu para Walt tomar um chá de sumiço do estúdio, ainda marcado pelo fantasma da greve.



Enfim, Disney não aceitou a proposta por mera politicagem. Ele e seus trabalhadores iriam buscar inspiração e material para fazer filmes animados que promovessem a amizade entre os países americanos de forma criativa. Dessa ideia, nasceram dois longas: Alô Amigos (1942) e Você Já Foi À Bahia? (1944). Em 1946 o estúdio pensava em lançar um terceiro filme com temática latina, dessa vez sobre Cuba, com o nome provisório de Cuban Carnival, mas com o fim da Guerra e restrições do estúdio, o projeto foi arquivado.








A passagem de Disney pela América do Sul rende por si só um post à parte, então eu não vou me prolongar mais sobre. Fica para uma próxima! (talvez num podcast futuro eu traga mais material, então fiquem ligados)


DUMBO (1941)

A produção de Dumbo foi atrasada por conta da greve dos animadores. Depois dos flops comerciais caríssimos Pinóquio e Fantasia e todo o auê interno na empresa, a Disney apostou em um filme curto, desenho mais simples e de orçamento reduzido. E deu certo! Dumbo foi um sucesso ao estrear em 23 de outubro de 1941, e permanece como um dos inesquecíveis clássicos do estúdio. Com apenas 64 minutos de duração e animação mais singela, é a perfeita representação animada de que “menos é mais”! Disney pôde enfim respirar aliviado com um retorno financeiro… Saludos Amigos e The Three Caballeros também fizeram sucesso comercial e de crítica.
Foi tanto sucesso que o elefantinho Dumbo ia estampar a capa da revista Time em dezembro de 1941, mas por conta do ataque de Pearl Harbor naquele mesmo período, a capa nunca chegou a acontecer.

Em conclusão, Dumbo é um filme redondinho no qual tudo funciona como um reloginho, assim como em Branca de Neve a soma dos ingredientes resultava em perfeição. Sim, há partes problemáticas mas não acho que afetam o resultado final. O filme continua cativante e passível de identificação na questão do bullying e da exclusão social de Dumbo e sua mãe, dos corvos e do ratinho — cada um deles marginalizado dentro de um contexto social. E uma questão importante que é denunciada: a exploração dos animais nos circos, que até outro dia era muito frequente e vista como entretenimento.

Walt anos depois diria que Dumbo, junto com Branca de Neve, era seu filme favorito dentro da sua obra. Talvez por ter conseguido passar a sua mensagem de forma singela, simples e bem-sucedida altogether.

BAMBI (1942)
“O que aprendi com o mundo animal, e o que todo mundo que o estudar aprenderá, é um senso renovado de parentesco com a terra e todos os seus habitantes.”

Aqui, mais ainda que em Dumbo, Disney prega o amor aos animais e à natureza, através de uma história emocionante de amadurecimento sob a perspectiva dos seres da floresta. Walt foi de certa forma pioneiro também nesse quesito, quando a ecologia e a defesa dos animais ainda não eram moda. O grande vilão da história com certeza é o homem caçador, que ainda por cima destrói a natureza com fogo e outras crueldades.


O filme levou anos para ser concluído (sua pré-produção começou em 1937!). Foi resultado de muito trabalho e pesquisa para animar a floresta e os animais da forma mais perfeita possível. Um hábito do estúdio que virou rotina para o filme foi trazer animais de verdade para serem estudados e analisados nos mínimos detalhes. Branca de Neve já tinha animais da floresta, mas eram mais coadjuvantes e animados de forma simples. Para Bambi, os artistas aprimoraram muito o estilo de desenho. Tanto que alguns críticos não gostaram do “realismo excessivo” e “falta de fantasia” do desenho. Mesmo com os esforços da empresa, os tempos de guerra foram bem difíceis e Bambi, assim como Fantasia e Pinóquio, não obteve o sucesso esperado na bilheteria. Também como seus antecessores, foi ao longo das décadas recuperando lucros, gerando receitas milionárias e novas críticas positivas enaltecendo-o como um clássico da animação.
Também foi desafiador adaptar a história original, que era triste e sombria. Ainda com toques Disney, o filme é até hoje lembrado como triste pelos espectadores, especialmente pela morte da mãe de Bambi. Pesquisas indicam que esse é um dos filmes que mais fez plateias chorarem na história. Até a filha de Walt, Diane, reclamou com o pai por ele não ter mudado essa parte da história, já que ele tinha poder para isso e já tinha alterado enredos para seus filmes. Mas Walt preferiu seguir o livro, acreditando que era importante mostrar as eventuais perdas e dificuldades durante o amadurecimento. E pensando assim, ele seguiu o melhor caminho para a história.
Num raro momento de emoção na frente dos empregados, Walt disse depois de uma exibição do filme ainda em produção, às lágrimas: “Obrigado, amigos, essas personalidades são puro ouro!”

HIATO DA GUERRA E A CONTRIBUIÇÃO DO ESTÚDIO (1943–1945)

Para continuar sobrevivendo no contexto da Segunda Guerra, os estúdios Disney investiram principalmente em filmes de propaganda para os EUA e aliados, como foram o documentário A Vitória pela Força Aérea e o curta A Face de Führer, os dois lançados em 1943. Até o final da guerra, em 1945, o estúdio ficou parcialmente fechado ou em atividade reduzida. Algumas partes do complexo de Burbank serviram de base militar também.



GREMLINS: O projeto que só ficou no papel, muito antes dos Anos 80 (1943)

Na história de Dahl, os gremlins são criaturas mitológicas travessas que sabotam os aviões da Força Aérea britânica como revanche por terem tido sua floresta natal destruída para a construção de uma base aérea. Durante o conflito da Segunda Guerra, os gremlins são convencidos a unirem forças para combater os nazistas e Hitler. Ao invés de destruir os aviões, eles passam a consertá-los.
Em seu livro de memórias Lucky Break de 1978, Dahl escreveu sobre a experiência: “Todos os dias, eu trabalhava com o grande Walt Disney em seus estúdios em Burbank, traçando o enredo para o próximo filme. Eu me diverti muito. Eu ainda tinha apenas 26 anos. Participei de conferências de histórias no enorme escritório de Disney, onde cada palavra falada, cada sugestão feita, era anotada por uma estenógrafa e datilografada depois. Andei pelas salas onde trabalhavam os animadores talentosos e briguentos, os homens que já haviam criado Branca de Neve, Dumbo, Bambi e outros filmes maravilhosos. Quando meu tempo livre acabou, voltei para Washington e deixei com eles o projeto.”
O livro Gremlins foi publicado em janeiro de 1943; foi o primeiro livro publicado de Roald. Mas apesar do entusiasmo de Walt com o projeto, a ideia do filme terminou misteriosamente engavetada. Provavelmente por desinteresse dos distribuidores, orçamento reduzido e dificuldades na época para animar os gremlins de forma satisfatória.

DESTINO: O encontro inusitado de Disney e Salvador Dalí (1946, só lançado em 2003)

Disney podia ser conservador e quadrado na sua vida pessoal, mas estava sempre querendo inovar e fazer diferente nas suas criações. Ele manteve correspondência com Salvador Dalí, artista espanhol surrealista que também tinha admiração pelo trabalho de Walt e seu estúdio de animação. Dessa amizade improvável nasceu a ideia de um trabalho em conjunto entre duas das mentes mais criativas do século XX, nos idos de 1945 e 1946.


Tristemente, o projeto acabou engavetado (mais por questões orçamentárias, pois a recuperação no pós-guerra foi lenta e gradual) e só seria finalizado mais de 50 anos depois, em 2003, quando o sobrinho de Walt, Roy E. Disney, na época CEO da empresa, resgatou o projeto dos arquivos e enfim, concluído, o curta Destino foi lançado.

AS COLETÂNEAS ANIMADAS E O INTERLÚDIO DO PÓS-GUERRA (1946–1949)


As coisas não melhoraram do dia para a noite após o fim da Segunda Guerra Mundial. Só em 1950, com Cinderela, que o estúdio voltaria a fazer um longa-metragem totalmente animado com uma história única. Entre 1946 e 1949, foram produzidos filmes estilo antologia, compostos por dois ou mais segmentos animados curtos. O recurso de misturar live action com animação também foi bastante usado nesse período por ser menos caro do que um filme todo desenhado.




O POLÊMICO A CANÇÃO DO SUL (1946)

No quesito polêmica dentro da sua obra, Song of the South é de longe o filme mais controverso de Disney. Em resumo o filme gira em torno da figura do ex-escravo Uncle Remus (vivido por James Baskett), que muito ensina às crianças com suas histórias. Nos moldes de E O Vento Levou..., a história é controversa pelo retrato que faz dos negros como subservientes aos brancos, mesmo já não mais escravos aqui no contexto do filme. Também tem o uso de dialeto racista e falas problemáticas até mesmo na boca dos personagens animados. E não é motivo de polêmica só hoje: até na época de sua produção e lançamento, houve críticas e reações negativas ao filme. Walt Disney não quis saber e levou o projeto até o fim, e gostava dele. Como já falamos, Walt não era pessoalmente racista mas inconscientemente reproduzia ideias estereotipadas e preconceituosas.

A grande questão é que qualquer tipo de obra antiga deve permanecer disponível e debatida. A solução não é simplesmente jogar no esquecimento e fingir que nunca existiu. Por isso, acredito que a obra deveria ser relançada pelo estúdio e ter discussões sobre seu conteúdo, e avisos no streaming como tem "Estou tentando encontrar uma maneira de fazer com que as pessoas comecem a trazer Song of the South de volta, para que a gente passa conversar sobre o que foi, de onde veio e por que foi lançado." E o Vento Levou.... (filme incrível, clássico incontestável que ultrapassa o seu conteúdo problemático). Como poderiam retratar o Sul americano sem o racismo da época naquela região (que ainda existe, infelizmente)? De forma menos pejorativa, talvez, mas ainda assim, não dá para apagar a História e suas nuances obscuras. E de qualquer forma, racistas ou não, os sulistas são pessoas com qualidades e defeitos, como quaisquer outras pessoas. Suas estruturas sociais antigas eram equivocadas, mas aquela era a realidade deles e temos que entender isso através do contexto. Personalidades afro-americanas como a diva Whoopi Goldberg defendem que o filme deve ser trazido de volta. Ela disse: “Estou tentando encontrar uma maneira de fazer com que as pessoas comecem a trazer Song of the South de volta, para que a gente passa conversar sobre o que foi, de onde veio e por que foi lançado.”

O coelho Brer Rabbit em cena com Tio Remus. A música Zip-a-Dee-Doo-Dah venceu o prêmio de Melhor Canção Original e já foi gravada por nomes que vão desde Frank Sinatra até Miley Cyrus
Racismo e depreciação à parte, James Baskett foi agraciado com um Oscar Honorário em 1948 pelo seu trabalho em A Canção do Sul, tornando-o o primeiro ator negro a vencer o prêmio (mesmo que fora das categorias competitivas) - o primeiro ator negro a vencer pela categoria Melhor Ator seria Sidney Poitier em 1964. Walt Disney pessoalmente fez uma campanha forte para Baskett ser premiado, e no fim conseguiu. Pouco tempo depois da premiação, James faleceu naquele mesmo ano de 1948 por complicações do diabetes, aos 44 anos.

SO DEAR TO MY HEART (1948)

Meu Querido Carneirinho foi um filme menor, mas muito querido por Disney por ser uma história singela passada no mesmo interior rural americano no qual Walt cresceu. A ideia era fazer um filme inteiro em live action, mas os distribuidores não viram potencial e sugeriram sequências animadas para embalar a produção, e assim foi feito. No entanto, apesar do entusiasmo pessoal de Walt, o filme não fez muito sucesso e permanece no baixo clero das produções Disney. Também não está disponível ainda no Disney+, mas não é difícil de encontrar para comprar ou assistir, nem chega a ser polêmico ou evitado como A Canção do Sul.

TRUE LIFE ADVENTURES: PIONEIRISMO NOS DOCUMENTÁRIOS DE NATUREZA (1948–1960)
Sem ver muito futuro lucrativo, mas com real interesse pessoal, Walt ficou fascinado com filmagens da vida selvagem em uma ilha do Alaska. Esse pequeno projeto virou um minidocumentário animal e ganhou o nome de Seal Island (Ilha das Focas). Hoje, esses pequenos filmes parecem awkward e com sequências fabricadas, segundo biólogos especialistas, mas com certeza a iniciativa do projeto abriu portas para um nicho de entretenimento sobre a vida animal que hoje em dia continua sendo extremamente popular.

COMPETIÇÃO NOS DESENHOS: FLEISCHER, MGM, WARNER E OUTROS

A animação vintage não se resumia apenas a Disney. Até meados da década de 1940, o maior rival da Disney no mercado de animação era o estúdio Fleischer. Chefiado pelos irmãos Max e Dave, os personagens mais famosos do estúdio eram a Betty Boop, o palhaço Koko, o marinheiro Popeye, o cachorro Bimbo e até mesmo o Super-Homem. Ao contrário de Disney que focava em animais antropomorfos em cenários fantasiosos, os irmãos Fleischer tinham uma abordagem mais urbana, maliciosa e ao mesmo tempo sofisticada em suas animações, contendo até mesmo teor adulto e sexual, algo impensável na Disney. Mas em 1942, após boicote da Paramount (seus distribuidores), os estúdios Fleischer fecharam. A Paramount continuou fazendo animações com uma nova empresa, a Famous Studios, que durou até os anos 60 e lançou personagens como Luluzinha e Gasparzinho.
Atualmente, Fleischer Studios ainda funcionam como empresa que detém os direitos dos personagens como a Betty Boop e administram produtos e publicidade relacionados com os personagens famosos da antiga empresa de animação.

A Disney não era a única empresa de desenhos bem-sucedida no mercado cinematográfico da época. Nos anos 40 e 50 os seus maiores concorrentes foram a MGM com Tom e Jerry e A Pantera Cor-de-Rosa, a Warner com os Looney Tunes e Merrie Melodies, a Columbia com Mr. Magoo, e a Universal com o Pica-Pau. Com o surgimento da televisão, as animações curtas foram migrando para o novo formato de entretenimento.



ANOS 50: TRENS, TELEVISÃO, LIVE ACTION, DISNEYLAND E INÍCIO DA “ERA DE PRATA”

Pode parecer estranho, mas Walt Disney estava se distanciando cada vez mais das animações.
Por quê? Muitas são as possíveis causas desse gradual desencanto com os desenhos. A greve no estúdio e os anos sombrios da Guerra deixaram marcas profundas nele e nos trabalhadores. Os tempos de fraternidade na Hyperion estavam já distantes, e a atmosfera em Burbank era cada vez mais formal e impessoal. Há tempos que Walt não desenhava mais ou se envolvia com cada detalhe dos filmes.

Por outro lado, ele já se sentia no topo do mercado da animação, tendo alcançado resultados extraordinários, e como uma criança que se cansa de um brinquedo gasto ou de uma brincadeira velha, ele estava à procura de um novo desafio. Para esquecer os problemas do estúdio, Walt redescobriu uma de suas paixões de criança: os trens. Ele passava horas, noites em claro sozinho construindo o seu trenzinho de brinquedo.

Em 1949, Disney e sua família se mudaram para uma nova casa em Holmby Hills, Los Angeles. Com a ajuda de seus amigos Ward e Betty Kimball, que já tinham sua própria ferrovia no quintal, Walt imediatamente começou a trabalhar na criação de um trenzinho a vapor em miniatura para o seu quintal. O nome da ferrovia, Carolwood Pacific Railroad, veio da localização de sua casa na rua Carolwood Drive. A locomotiva a vapor em miniatura foi construída pelo engenheiro do estúdio Roger E. Broggie, e Walt a batizou de "Lilly Belle" em homenagem a sua esposa Lillian.


Vários amigos e famosos da época embarcaram no trenzinho de Disney, como o ator Kirk Douglas, a colunista fofoqueira Hedda Hopper e o artista Salvador Dalí. Era uma sensação do momento andar no trem da casa de Walt Disney. Mas após uns três anos, ele acabou desativando a mini ferrovia devido a uma série de acidentes envolvendo seus convidados. Depois o trem foi para exposição na Disneyland e hoje se encontra no museu Walt Disney Family em São Francisco.

A nova casa dos Disney era espaçosa e confortável, mas não era luxuosa nem ostensiva. Sim, Walt era acusado de ser cafona, o que em parte é verdade, mas ele nunca foi de luxos excêntricos, por mais rico que tivesse se tornado. Talvez o trenzinho do quintal fosse a maior extravagância da residência mesmo. E esse era um prelúdio dos projetos para a Disneylândia.

Mas voltando para os desenhos…

CINDERELA (1950)

A empresa conteve como pôde os custos dessa nova produção, baseada no conto de fadas de Charles Perrault. 90 por cento do filme foi desenhado a partir de modelos de ação ao vivo, segundo um dos desenhistas da animação, Dowel Iaryn. Helene Stanley foi a modelo de Cinderela em live-action, enquanto Ilene Woods deu a voz para a personagem. A trilha sonora do filme recebeu tratamento quase igual ao de um filme live action — uma tendência dos novos tempos, deixando de lado o caricato estilo “Mickey Mouse” de sincronizar ação com música.
Por outro lado, a animação dos desenhos Disney passou a seguir um estilo clássico e conservador. O estúdio tristemente deixou a experimentação e o abstrato dos anos 30 e 40 para trás…

Cinderela poderia ter sido melhor em alguns aspectos da adaptação. Os ratos e animais acabam roubando a cena da protagonista… Um dos roteiros iniciais colocava Cinderela como mais assertiva, reagindo à tirania da madrasta e irmãs, mas infelizmente descartaram essa linha de condução. Mesmo assim, a heroína é cativante, graciosa e encantadora, e com a ajuda de seus amigos, de sua imaginação e de confiança em si mesma é que ela consegue mudar o seu destino. O próprio Walt começou de baixo, contando apenas com os seus sonhos para realizar as suas aspirações.
Temos que lembrar que nesse contexto antigo, aquela família ruim era tudo o que Cinderela tinha em sua vida solitária. Ela é uma pessoa boa e gentil por natureza, não levava a sério a amargura da madrasta e antipatia das meias-irmãs, e queria apenas ter um dia bonito no baile (que sem saber mudaria sua vida para sempre), fez o que pôde para realizar esse desejo e por fim quis guardá-lo para sempre, mesmo que não desse em mais nada depois. E enfim, ela tem a coragem de abraçar a possibilidade de uma vida melhor com o homem que ama no clímax final — muito bem conduzido por sinal, pois apesar de sabermos como vai terminar, o suspense do sapato de cristal se mantém até o último minuto!
Tanto Cinderela como Branca de Neve sobreviveram a abusos e provações, mas continuaram pessoas doces e generosas, nunca deixando de sonhar e acreditar — o que não deixa de ser uma forma de resistência.

Para a alegria da Disney, Cinderela fez bastante sucesso em 1950. Foi a maior bilheteria desde Branca de Neve, e com os milhões em lucros a Disney conseguiu não apenas sair do vermelho, mas pôde alçar novos voos: abriram a própria companhia de distribuição, entraram no mercado da televisão e começaram os trabalhos para o parque temático.
Nessa época Disney estava mais ocupado com os seus trens, com a TV, e também concentrado na nova aposta do estúdio: filmes inteiramente live-action com atores e cenários reais.


ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1951)

Disney foi sensato em apostar na doce Cinderela primeiro, pois ele já sabia que os personagens de Alice e Peter Pan eram mais "frios" e excêntricos. Mas já era hora das duas histórias irem para as telas, pois estavam há anos em stand by.
Desde a série de filmes mudos com Alice que a história de Lewis Carroll fascinava Disney. Até os anos 50, o estúdio cogitou diversas possibilidades para a produção. Inicialmente, seria uma mistura de live-action com desenho, e atrizes como Mary Pickford, Ginger Rogers e Margaret O'Brien foram cogitadas para o papel principal. Para o roteiro, até o escritor Aldous Huxley (de Admirável mundo novo) chegou a ser contratado para uma reescrita do roteiro. Mas Disney achou melhor fazer um longa todo animado, com o fim de ser mais fiel ao livro, mais lúdico e menos literal. No entanto, durante a produção muitas sequências do livro foram descartadas ou reformuladas por um questão de ritmo ou para se adequar ao "padrão Disney de qualidade".

Foi uma decepção de crítica e público na época de seu lançamento. Walt achou que "faltou emoção" ao filme, outros animadores sentiram que faltou mais equilíbrio e melhor continuidade entre as sequências. O fato é que se tornou uma salada mista animada digna de uma viagem de LSD (o que rendeu revivals psicodélicos nos anos 60 em diante). Com o passar do tempo, Alice ganhou mais público e reconhecimento, mas ainda permanece como um dos clássicos menos cultuados da Disney.
PETER PAN (1953)

Peter Pan, por sua vez, fez um sucesso considerável, mas também teve críticas mistas. Assim como Alice, era um projeto que se arrastou por anos até enfim sair do papel. As fontes divergem sobre o que Walt achou do resultado: umas dizem que ele ficou satisfeito, outras que ele esperava mais da animação. Anyway, sempre foi uma história querida por Walt, já que ele mesmo era um garoto que se recusava a crescer.

Disney já não estava tão presente nos detalhes das animações (ainda que sempre estivesse nas reuniões e a palavra final fosse sempre a sua). Ele confiava cada vez mais nos seus "nove anciões" - os nove animadores mais emblemáticos da era dourada dos desenhos Disney que citamos lá em cima. Peter foi o último trabalho em conjunto dos nove artistas.

Peter Pan foi o último filme da Disney distribuído pela RKO. Depois, Walt finalmente conseguiu fundar a sua própria empresa de distribuição, a Walt Disney Studios Motion Pictures, não mais dependendo de terceiros para distribuir as suas produções. A Disney, após anos de crise, estava crescendo mais e mais…
TELEVISÃO (Anos 50 em diante)

Walt foi um dos únicos magnatas de estúdio em seu tempo a enxergar a TV como um meio promissor, e não como um inimigo. Foi graças ao sucesso de seus investimentos na televisão que Walt conseguiu financiar a Disneyland e fazer a sua empresa crescer mais ainda.

Com o sucesso de um especial de Natal sobre Alice no País das Maravilhas em 1950, a empresa decidiu criar mais conteúdo televisivo. Os primeiros programas Disney no canal ABC foram: Walt Disney's Disneyland, com desenhos e atrações live-action variadas ; Clube do Mickey, o primeiro show de TV diário do estúdio; e a minissérie patriótica de sucesso Davy Crockett, que se tornou tão popular com sua trilha sonora que a Disney fundou sua primeira distribuidora musical, a Disneyland Records.
As aparições de Walt na TV o tornaram mais famoso do que já era. Antes, o seu nome era mais popular do que a sua imagem em si. Com o advento da televisão o país inteiro o assistia, e assim ele se tornou uma instituição nacional. Com o seu carisma e dom de entreter o público, era o avô ou tio que todos queriam ter.

AMIZADE E PARCERIA COM HERBERT RICHERS - você sabia?

Tudo começou nos anos 40, quando Disney estava de novo no Brasil (entre 1944 e 1946) juntando material para um novo filme sobre o Brasil (que acabou não se realizando). Herbert Richers era de Araraquara, interior de São Paulo, e havia se mudado para o Rio nos anos 1940 para estudar engenharia. Procurando complementar sua renda, Herbert começou a trabalhar como fotógrafo em um estúdio de cinema. Sua habilidade com a câmera e o conhecimento de inglês o aproximaram da equipe de filmagem de Walt Disney, que o contratou como cinegrafista. A amizade com Walt rendeu muitas visitas de Richers ao estúdio Disney em Los Angeles. Walt incentivou Herbert a virar produtor de cinema no Brasil, e em uma das visitas do brasileiro aos EUA em 1959, Disney propôs que Herbert Richers fosse o responsável pelas dublagens de suas produções na TV brasileira.

A parceria deu super certo e impulsionou a Herbert Richers S.A., que em poucos anos conseguiu monopolizar o mercado de dublagem nacional. Em 1962 o então presidente Jânio Quadros assinou um decreto que obrigava todos os filmes da televisão a serem dublados. A partir daí a dublagem brasileira realmente começou a emplacar, sendo a Herbert Richers responsável pela dublagem de 80% do mercado nacional no seu auge. Quando a profissão de dublador foi regulamentada em 1978, a Herbert Richers tinha mais trabalhadores na sua folha de pagamento do que a Rede Globo.
Mas com a flexibilização das regras trabalhistas para a classe e aumento da concorrência nos anos 2000, a empresa começou a entrar em declínio. Somaram-se dívidas, excesso de trabalhadores e eventuais rescisões em massa, atrasos de salário e processos judiciais. Depois da morte de Herbert em 2009, a empresa fechou oficialmente as suas portas, marcando assim o fim de uma era na dublagem brasileira.

DISNEYLAND (inaugurada em 17 de julho de 1955)

Novamente, era um projeto ambicioso que nem todo mundo botou muita fé logo de início. Mas a nova loucura Disney foi aos poucos tomando forma; a eloquência de Walt em apresentar os seus projetos visionários conseguia conquistar a todos.



Em meados de 1954, Disney enviou seus "imagineers" a todos os parques de diversões dos EUA para analisar o que funcionava e quais armadilhas ou problemas havia nos vários locais e incorporou suas descobertas ao projeto. O trabalho de construção começou em julho de 1954 e a Disneyland foi inaugurada em julho de 1955, um ano depois.

O parque foi projetado como uma série de divisões temáticas, ligadas por uma rua principal, a Main Street, U.S.A.-uma réplica da rua principal em sua cidade natal, Marceline (mas quase todas as cidades americanas têm uma "main street"). Enfim, as áreas temáticas conectadas foram Adventureland, Frontierland, Fantasyland e Tomorrowland. O parque também continha a ferrovia Disneyland que ligava as áreas; ao redor do parque havia uma inclinação alta para separar o parque do mundo exterior. Um editorial do The New York Times considerou que a Disney "combinou com bom gosto algumas das coisas agradáveis de ontem com fantasia e sonhos de amanhã".

Embora houvesse pequenos problemas iniciais nas instalações do parque, foi um sucesso. Após um mês de operação, a Disneylândia estava recebendo mais de 20.000 visitantes por dia; ao final de seu primeiro ano, atraiu por volta de 3,6 milhões de visitantes. A partir dali, a Disney deixava de ser apenas um estúdio. Era agora o início de um império.



A DAMA E O VAGABUNDO (1955)

Mesmo imerso em outros projetos fora do estúdio, e claramente mais interessado na Disneyland, Walt não deixou de supervisionar os trabalhos de Lady and the Tramp. A história de amor canino bateu recorde na bilheteria e fez muito sucesso na sua estreia, em 1955. No final da década de 80, também se tornou o videocassete mais vendido de seu tempo. Não tem nenhuma grande inovação na animação do filme, que funciona mais pela história singela, classuda e nostálgica.


As críticas da época do lançamento, no entanto, foram mistas. Uma parte dos críticos achou o filme muito meloso e sentimental (tipo de crítica que a Disney já vinha recebendo), além de supostamente o trabalho dos animadores ter ficado abaixo da média. Talvez não seja o melhor trabalho de animação da época, já que os artistas tiveram que reformular muita coisa para se adaptar à nova tecnologia do CinemaScope (tela widescreen), muito em voga nos anos 50 e 60.
A Dama e o Vagabundo está presente no número 95 do Top 100 de maiores histórias de amor do cinema do American Film Institute (AFI).


A BELA ADORMECIDA (1959)

As animações do estúdio ainda rendiam bastante, mas por quase toda a década de 50 receberam críticas mistas e pouco entusiasmadas. Disney, em busca de uma aclamação geral do público e da crítica, resolveu apostar novamente na fórmula do conto de fadas clássico, que havia se mostrado bem-sucedida em Branca de Neve e Cinderela. Sleeping Beauty foi o filme animado mais caro da Disney até aquele momento, custando em torno de 6 milhões de dólares. Um projeto ambicioso na parte visual e artística, mas que não fez muito sucesso como um todo.


É capaz que o maior problema seja a condução da história. Os personagens não têm tanto carisma e humor como em Branca de Neve, o que deixou a história arrastada e monótona. A história da Bela Adormecida por si só já é motivo de muita desconstrução nos dias de hoje, e até com razão pois é um dos contos de fadas mais problemáticos.

Aurora é uma das protagonistas mais lindas (seu desenho foi inspirado em Audrey Hepburn), mas com menos tempo de cena e também uma das mais apagadas. Um defeito das princesas dessa era é uma certa passividade, algo que felizmente foi sendo melhorado com as protagonistas mais assertivas das décadas seguintes. Mas, como princesas/jovens em contextos medievais de contos de fadas, restritos para as mulheres, acho que cada protagonista tem o seu destino, faz e acontece da sua maneira e por fim amadurece. Elas não precisam de armas e violência para mostrar que são fortes e corajosas à sua maneira.

De certa forma, era o fim de uma era. O próximo conto de fadas da Disney só seria feito quase 30 anos depois, com A Pequena Sereia em 1989.

REINVENÇÃO NOS ANOS 60: EPCOT, A UTOPIA DO FUTURO E O ADEUS DE WALT

O estúdio entrou nos anos 1960 em crise. A empresa estava de novo no vermelho por conta do desempenho decepcionante de A Bela Adormecida nos cinemas. Que fique claro que Disney nunca levou bilheteria e lucro tão a sério, afinal flops comerciais do passado renasceram nos relançamentos — sua preocupação era mesmo com o futuro do estúdio e com as possibilidades de suas novas ideias. Rumores eram de que o estúdio deveria focar apenas em live-action e TV, e parar de produzir desenhos pois esses eram projetos caros que não estavam mais dando o mesmo retorno de antigamente.

Assista aqui a uma entrevista relâmpago que Walt concedeu em Lisboa em 1962, arriscando até umas palavras em português: https://www.youtube.com/watch?v=FbJaU7c6SXw
Por mais que a animação já não significasse para ele o mesmo que antes, Walt se recusou a deixar de fazer desenhos animados. A solução foi produzir um filme animado mais simples e contemporâneo.
101 DÁLMATAS (1961)

O triunfo de 101 Dálmatas salvou o setor de animação da Disney, mas iniciou um período de animação mais básico, estilo xerox imperfeito, que duraria até o fim dos anos 80. Mas com a supervisão de Walt até sua morte em 1966, os filmes Disney ainda contaram com o seu toque mágico. Ele disse, porém, que em Dálmatas pouco tinha a acrescentar, pois o roteiro de Bill Peet para o longa era "perfeito". E realmente, o filme consegue dosar comédia, drama e aventura maravilhosamente bem.



Apesar do sucesso, Walt Disney não ficou satisfeito com a animação do filme. Para ele, o visual não tinha a fantasia de seus filmes da era dourada. Só pouco tempo antes de morrer, em 1966, Walt pareceu ter “perdoado” o animador dos Dálmatas, Ken Anderson, que disse:
“Ele parecia muito doente. Eu disse: “Puxa, é ótimo ver você, Walt”, e ele disse: “Sabe aquela coisa que você fez nos Dálmatas”. Ele não disse mais nada, mas apenas me deu esse olhar, e eu sabia que tudo estava perdoado e, na opinião dele, talvez o que eu fiz com os Dálmatas não tenha sido tão ruim. Aquela foi a última vez que eu o vi. Então, algumas semanas depois, eu soube que ele tinha partido.”

MARY POPPINS (1964), sua obra definitiva


Mary Poppins é considerado, junto com Branca de Neve, o maior triunfo cinematográfico da carreira de Walt. Como já não fazia há tempos, ele fez questão de supervisionar cada detalhe da produção. Foi um longo caminho até as filmagens… Disney tentava entrar em um acordo com a escritora P. L. Travers desde 1938, e muita água rolou debaixo da ponte até enfim a autora permitir a produção do filme em 1961. A relação difícil entre Disney e Travers foi retratada no filme Saving Mr. Banks em 2013, com Emma Thompson no papel de Travers e Tom Hanks como Walt Disney (Hanks, by the way, na vida real é um primo distante de Disney).

Diferenças à parte, Disney foi muito feliz com esse filme e manteve a mágica da história original à sua maneira. Julie Andrews fez a sua estreia no cinema de maneira triunfal, logo em seguida vencendo o Oscar de Melhor Atriz no ano seguinte. No seu discurso Andrews agradeceu com ironia a Jack Warner, que havia trocado Julie por Audrey Hepburn para o filme My Fair Lady. Julie fez My Fair Lady nos teatros com sucesso, mas Warner não quis apostar em uma novata para o cinema, diferente de Walt que até esperou que Andrews (grávida na época da pré-produção) tivesse sua filha antes de começar as gravações.


EPCOT, a utopia final de Disney

Em 1959 começaram as ideias para um novo parque Disney. Pesquisas apontavam que apenas 5% dos visitantes da Disneyland vinham da Costa Leste (Nova York e cia), onde se concentrava a maior parte da população do país. Walt tinha interesse em uma área maior e com maior autonomia para o novo parque temático. No fim de 1963, ele sobrevoou a região de Orlando, Flórida, e se interessou muito pelas terras. As negociações começaram, mas Disney manteve sigilo absoluto até meados de 1965 sobre o seu novo parque: Disney World.

EPCOT não seria o parque temático que conhecemos hoje, mas uma cidade inacabada do futuro. Talvez já sentindo que não viveria por muito mais tempo, Walt havia decidido deixar seu legado para o futuro, nessa que era a sua ideia mais ambiciosa e futurista.
“Uma comunidade de protótipos experimentais do amanhã que se inspirará nas novas ideias e novas tecnologias que estão surgindo agora dos centros criativos da indústria americana. Será uma comunidade do amanhã que nunca será concluída, mas vai sempre apresentar, testar e demonstrar novos materiais e sistemas. EPCOT sempre será uma vitrine para o mundo da engenhosidade e imaginação da livre iniciativa americana”



Mas a utopia de um pode ser a distopia do outro. Em EPCOT não seria permitido o desenvolvimento de favelas. Seria um lugar onde os sindicatos seriam proibidos, todas as casas seriam alugadas, todo mundo teria um trabalho (sem aposentadoria ou previdência social), e a cidade teria a sua própria segurança. Esse tipo de conceito agora está ganhando influência tangível em condomínios privados protegidos por suas próprias forças de segurança. Alguns entendidos chegam a comparar o projeto de Disney com ideais totalitários.

Preferimos não divagar muito sobre o projeto ser possivelmente fascista ou não, afinal ele nunca saiu do papel no fim das contas. Por um lado, teria sido interessante ver o potencial dessa possível cidade do amanhã, pois Walt realmente tinha ideias interessantes muito à frente de seu tempo apesar de seu conservadorismo pessoal e político. Por outro lado, sua natureza controladora poderia tornar essa cidade uma espécie de distopia. Ele mesmo passou por cima de muitos protocolos, devido a sua influência e prestígio, para construir os seus parques. Hoje em dia se debate muito sobre os bastidores do mundo de purpurina da Disney, que esconde abusos trabalhistas e passa por cima de leis e limites para ampliar seus lucros e atrações.

Walt se mantinha mais ocupado do que nunca em 1966, sem qualquer ideia de possível aposentadoria. Entretanto, em novembro daquele ano ele foi diagnosticado com câncer de pulmão em estágio avançado. Walt iniciou um tratamento, mas já era tarde. Em 30 de novembro ele foi internado no hospital St. Joseph em Burbank, e no dia 15 de dezembro de 1966, dez dias depois de seu aniversário de 65 anos, Walt Disney faleceu, ao lado do seu irmão mais velho Roy, que continuou massageando o irmão e conversando com ele, como se ele ainda estivesse vivo. E de certa forma ainda estava, e está, em outro plano.

No seu quarto no hospital, Walt continuava estudando plantas e ideias para EPCOT e para o estúdio Disney. Suas últimas palavras foram “Kurt Russell” escritas em um pedaço de papel. Russell era um astro mirim em ascensão na Disney da época, mas ninguém sabe bem por que Walt escreveu seu nome, nem mesmo o ator. O que se nota é que Disney pensava em trabalho e em seus projetos mesmo no seu leito de morte…
Contrariando o mito popular, Walt Disney não foi congelado, e sim cremado como um simples mortal. Mas o mito que envolve o jovem que se recusava a crescer, que criou o seu próprio mundo fantástico a partir de um camundongo, esse mito sim nunca deixará de existir.

MOGLI, O MENINO LOBO (1967) foi o último longa animado produzido por Walt em vida


Norman também lembrou sobre os últimos momentos de Walt no estúdio em 1966, quando trabalhou perto dele na produção de The Jungle Book :
“Nenhum de nós sabia durante a produção do filme que Walt estava doente. Ele trabalhou com o vigor e entusiasmo de sempre. Você nunca pensaria que Walt estava morrendo em 1966. Ele nunca pareceu vacilante ou que sua saúde estava falhando. Nós nunca percebemos. Acho que é por isso que sua morte foi um choque para todos nós. Ele era ranzinza, ele estava sempre mal-humorado — mal, mal-humorado Walt — mas era assim que ele era todos os dias. Nós nunca soubemos de sua doença.”






EPÍLOGO: O homem das mil e uma faces

DISNEY DEPOIS DE WALT (Anos 70 em diante)

A era de bronze (ou para uns a “idade das trevas” da Disney) se deu entre os anos 70 e boa parte dos anos 80. Depois da morte de Walt Disney, o estúdio de animação se viu perdido e sem direção. Os desenhos dessa época foram menos criativos e pouco inspirados. A maior parte deles ficou esquecida com o passar do tempo e poucos deles fizeram sucesso. Nesse período foram produzidos Aristogatas, Robin Hood, As Muitas Aventuras do Ursinho Pooh, Bernardo e Bianca, O Cão e a Raposa, O Caldeirão Mágico, As Peripécias do Ratinho Detetive e Oliver e Sua Turma.





Depois seguiram-se grandes sucessos como Aladdin , O Rei Leão , Pocahontas , Mulan , Tarzan ... E entramos no novo milênio. Gostaria de discorrer mais sobre os filmes em si, curiosidades do estúdio e seus artistas na Nova Era, mas deixo para futuros textos. O que podemos concluir é que a Disney, mesmo consagrada, tem seus altos e baixos e está sempre experimentando e (re)descobrindo formas de fazer animações de qualidade e sucesso. Como Walt sempre dizia, o importante é sempre continuar seguindo adiante...
Não vou entrar no mérito da Disney atual ser boa ou ruim porque renderia uma longa discussão. Seu monopólio no mercado atual é bem preocupante e muitas de suas atitudes questionáveis. As produções recentes pouco me interessam, como quase tudo no circuito recente do cinema comercial, cada vez mais voltado a dinheiro, efeitos especiais e entretenimento barato. Uma coisa que certamente Walt não gostaria no cenário atual é a falta de criatividade, ousadia e imaginação. Muito do seu sucesso se deu por ousadia, confiança no potencial e muita determinação e trabalho duro.

POR TRÁS DO MITO, UM HOMEM SIMPLES E COMPLEXO

É incrível como cada pessoa que conviveu com Walt tem uma lembrança única e particular dele, nunca igual a dos outros, seja positiva ou negativa. O que nos resta é juntar cada pedaço para montar o quebra-cabeça. Walt foi vários em um só.

Amigos e familiares consideravam Disney mais um ingênuo na matéria de política. O que ele queria era defender os valores tradicionais nos quais acreditava, como um homem patriota e empresário capitalista. Sim, Walt Disney serviu alegremente ao capital e ao imperialismo com sua obra. Ele usou seu poder várias vezes para conseguir o que queria e também prejudicou carreiras. Contudo, ele sempre foi uma espécie de outsider em Hollywood, antes e depois do seu sucesso ele lutou muito para pôr suas “loucuras” em prática, quando todos o desacreditavam. E mesmo que seus filmes e parques ainda reforcem utopias ou valores hoje considerados quadrados, a questão é que até hoje essas suas criações trazem alento, esperança e imaginação a milhões de plateias pelo mundo inteiro.

O cineasta russo Sergei Eisenstein (de clássicos soviéticos como O Encouraçado Potemkin) era um admirador fervoroso de Walt Disney. Eisenstein, que era um crítico exigente e perfeccionista em relação a cinema, dizia ficar chocado com a perfeição das animações Disney, chegando a dizer que Branca de Neve era um filme impecável. Essa amizade e admiração entre dois representantes de mundos opostos talvez seja o melhor exemplo de opostos que se atraem e de certa forma se completam. Ainda que consciente do mundo Disney ser um reforço da ideologia do capital e cia, Sergei acreditava que, através das animações, o mesmo representante do sistema que reprime e açoita se redime ao compartilhar com o seu público um mundo de beleza, esperança e fantasia. Escapismo da realidade que o próprio Walt Disney sempre buscou em sua trajetória, criando assim o seu próprio mundo. Um mundo apenas possível em Hollywood, a cidade dos sonhos agridoces e ilusórios, que nós amamos e desprezamos ao mesmo tempo, mas que nunca deixa de nos fascinar. Um mundo apenas possível por conta de sua mente pioneira e visionária e paradoxalmente seu controle de déspota conservador e reacionário.
As suas contradições não o cancelam, apenas o tornam mais humano e interessante. Analisando suas conquistas como indivíduo, acima de tudo, é impressionante como ele foi tão longe para realizar os seus sonhos e ambições. Sua história de vida inspira muito a superar os fracassos e persistir nos nossos ideais. Como ele dizia: “se você pode sonhar, você pode fazer”.

“Este homem parece conhecer não apenas a magia de todos os meios técnicos, mas também os fios mais secretos dos pensamentos, imagens, ideias, sentimentos humanos. Ele cria em algum lugar no reino das profundezas mais puras e primitivas. Lá, onde somos todos filhos da natureza.”
Eisenstein em um livro póstumo inacabado de ensaios chamado On Disney
Fazendo uma comparação polêmica, será que a atual cultura do cancelamento está tão longe do Macarthismo em termos de boicote? Nunca será justificável a caça às bruxas promovida na metade do século passado, mas qualquer polarização extrema, sob qualquer espectro político, pode reprimir e castrar a nossa individualidade e nossa expressão. Sim, houve progressos no mundo, mais inclusão, e intolerância não é liberdade de expressão. Mas continuamos demonizando, procurando bodes expiatórios e “cancelando” aquilo/aqueles que não vão de encontro com a nossa ideologia, com o que foi estabelecido como politicamente correto. Enfim, deixo a questão no ar e espero que com o tempo nós voltemos a ser mais autênticos, menos escravos de cartilhas, menos juízes dos outros. E que saibamos separar o artista de sua obra e encaixar uma obra dentro de um contexto, quando o assunto é consumo de arte e entretenimento. Isso não é passar pano, é maturidade de pensamento e reflexão. Não existe presente sem passado, muito menos futuro. E só com entendimento, reflexão e aceitação dos erros e acertos do passado é que poderemos construir um futuro mais justo, pacífico e promissor — sem perder a imaginação e a criatividade.

Ame ou odeie, mas Walt Disney fez História e mudou para sempre o cenário cultural do entretenimento, e por que não, da arte. A sociedade evoluiu, o caminho é longo e infinito, mas a contribuição de Walt para o cinema e companhia, apesar de tudo, jamais será esquecida. Acima de seus defeitos e ideias antiquadas, sua mente visionária e seu legado cultural servirão sempre de inspiração para novos artistas e amantes de boas histórias, de todas as idades — eternamente jovens em seus corações e espíritos.

“O riso é atemporal, a imaginação não tem idade, os sonhos são para sempre.”

Pedro Dantas
Dezembro de 2021/Janeiro de 2022
BIBLIOGRAFIA
Gabler, Neal (2006). Walt Disney - The Triumph of the American Imagination. New York: Alfred A. Knopf.
Thomas, Bob (1994) [1976]. Walt Disney: An American Original. New York: Disney Editions.
Agradeço aos portais D23.com, O Camundongo e Oh My Disney pela ajuda na minha pesquisa. O documentário Walt: The Man Behind the Myth (2001) também ajudou bastante na produção do texto

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