Sol de Outono / H.M. Pulham Esq. (1941) — Resenha do filme

Breve sinopse: Harry Pulham (Robert Young) é um homem da classe alta de Boston que sempre viveu a vida como a sua família e o seu meio lhe disseram para viver, e não como ele realmente gostaria de viver. Já na meia-idade, ele é surpreendido por dois reencontros com pessoas de seu passado. Primeiro por um ex-colega de faculdade que pede a Harry para escrever uma minibiografia de si próprio. Logo em seguida, Harry reencontra Marvin Myles (Hedy Lamarr), uma mulher moderna e independente a qual ele amou muito no passado. Enquanto escreve a sua biografia, Harry reflete sobre toda a sua vida, se perguntando se algum dia ele foi feliz, e se ele ainda tem chances de ser feliz, seja casado com a convencional Kay (Ruth Hussey), ou reacendendo a antiga paixão por Marvin.

Este é um dos filmes mais esquecidos da carreira de King Vidor, e certamente um de seus projetos mais experimentais dentro da MGM durante o Código Hays (período de censura no cinema americano que vigorou de 1934 até os anos 1960). Na Metro durante a era muda ele havia dirigido obras-primas de forte crítica social e humanismo, como o emblemático filme de guerra “O Grande Desfile” (The Big Parade, 1925), considerado o maior sucesso do cinema mudo, e o drama inesquecível “A Turba” (The Crowd, 1928). Já na era falada na MGM, Vidor realizou alguns dramas curiosos e ligeiramente fora da curva como “A Cidadela” (The Citadel, 1938), que assim como “Sol de Outono” também foi uma adaptação literária. No entanto, boa parte de seus filmes mais famosos foram produzidos em outros estúdios, como Goldwyn (“No Turbilhão da Metrópole” e “Stella Dallas, Mãe Redentora”), David O. Selznick (“Duelo ao Sol”) e Warner Bros. (“Vontade Indômita”). Todos esses recomendados a quem não viu!

Em “Sol de Outono”, por mais que pareça um filme mais “sóbrio” em relação a outros seus, notamos a marca do diretor-autor em vários detalhes: os pensamentos dos personagens em off, o tom irônico ao mostrar a banalidade do cotidiano e a hipocrisia da alta roda, os diálogos reflexivos muitas vezes fora do lugar comum, nenhum glamour exagerado nas estrelas principais, os enquadramentos e planos de câmera peculiares, close-ups, enfim. No meio de tantos musicais Technicolor e estrelas glamourosas daquela época, eis que temos um filme deveras dramático e agridoce sobre um homem de meia-idade que se questiona se é feliz. Sim, ele é da classe alta norte-americana, um homem respeitado, formado em Harvard, casado e pai de dois filhos. Tudo aparentemente perfeito e dentro dos moldes do círculo social no qual o protagonista está inserido — a engessada alta sociedade da Nova Inglaterra. Não à toa o seu título de status dá nome ao filme: H.M. Pulham Esquire, um título também quase alienígena para um longa metragem da era dos estúdios. À parte de seu contexto social, é muito fácil se identificar com os dilemas pessoais e existenciais de Harry.

Pulham sempre fez o que era esperado de si, raramente refletindo sobre as próprias escolhas e outras possibilidades — como ele mesmo diz em certa altura, “é muito difícil nos desligarmos de onde fomos criados”. Lembrando vagamente George Bailey (James Stewart em “A Felicidade Não Se Compra”, de Capra), Pulham abriu mão de sonhos e planos em prol de sua família e do que era considerado “o certo a fazer”. Poderia ir até mais longe e fazer um paralelo vago com “Morangos Silvestres” de Bergman, no que diz respeito a um protagonista que reflete sobre toda a sua trajetória e se questiona sobre o sentido de tudo. Ou então “Viver” de Kurosawa, sobre o velho senhor de vida monótona que só depois de se descobrir doente é que resolve viver a vida, mesmo que tardiamente. Enfim… O mundo de Harry vira de ponta-cabeça com o retorno de um antigo amor, Marvin Myles (Lamarr), e também com uma tarefa de escrever uma minibiografia sobre si mesmo. O que começa parecendo um epitáfio se transforma em um longo flashback, desde sua juventude até a sua meia-idade: o colégio interno, a faculdade, a Primeira Guerra Mundial e sua ida à Nova York para tentar coisas diferentes da cartilha de mauricinho de Boston, quando conheceu Marvin. Harry se pergunta se é feliz com a sua esposa, a convencional e mandona Kay (Ruth Hussey, de “Núpcias de um Escândalo”), ou se deveria viver uma nova aventura amorosa com Marvin, uma mulher moderna e estimulante que um dia o fez sair da caixa (pelo menos por um tempo).

Em relação ao papel da grande paixão de Harry, Marvin Myles, essa é provavelmente a melhor personagem dramática da carreira de Hedy Lamarr, em um dos poucos papéis dramáticos de sua filmografia. Lamarr é mais famosa por sua beleza e por ter inventado o sistema de comunicação que hoje é usado em Wi-Fi, GPS e Bluetooth, mas é importante lembrar que ela foi antes de mais nada uma atriz, que fez mais coisas interessantes do que só o épico “Sansão e Dalila” de DeMille ou o polêmico filme tcheco “Êxtase”, seus filmes mais lembrados (em “Êxtase” ela foi pioneira, em plenos anos 1930 apareceu nua e fez cena de orgasmo!). Além de belíssima, uma artista (e inventora) de muito talento, inteligência e personalidade.
Curiosidade aleatória: muitas fontes apontam Ava Gardner como uma figurante no filme, mas essa informação nunca foi confirmada de fato.

Outro fato curioso da história: a escolha do nome usualmente masculino Marvin para uma personagem feminina forte e independente. Durante a película, pouco sabemos do passado de Marvin, além do fato de ser filha de imigrantes, de origem humilde, e de ter batalhado muito sozinha para ser independente e alcançar os seus objetivos de ascensão social, algo que nunca foi uma preocupação para Pulham, já nascido em berço de ouro. Afinal Marvin conseguiu o padrão de vida sofisticado que tanto almejava, mas nada preencheu o vazio de seu coração após o término com Harry. Durante o reencontro dos dois, Harry diz a ela que é feliz como está, de maneira acomodada e conformista com o fato da vida ser mesmo decepcionante. Marvin em seguida diz de forma irônica e azeda sobre ser feliz: “Bem, eu tenho um iate e um mordomo”.

De certa forma, Harry é sempre dominado pelas mulheres com quem se relaciona. Marvin o ama, mas gostaria de moldar Harry de forma a torná-lo um homem diferente do que ele é, mas ele no fim se casou com a amiga de infância Kay, uma mulher mais convencional e frívola, mas também de personalidade forte e controladora. Ambas essas mulheres guiam e moldam Harry da forma que acham melhor, porque ele é um homem extremamente maleável e de personalidade nula. Em muitas cenas Harry não sabe o que dizer, não tem uma opinião ou é interrompido quando vai falar por outro personagem mais assertivo. Ele é um homem honrado com valores e senso de dever, tem ciência das hipocrisias das convenções e acaba contestando suas escolhas de vida e o seu meio social, mas não tem personalidade o suficiente para romper com o status quo. Também teve a responsabilidade de ser o homem da casa após a morte do pai, assumindo de vez o papel que lhe foi dado desde a hora em que nasceu: herdeiro distinto, estudante de Harvard, homem respeitável de família tradicional. E quando finalmente cria coragem para quebrar a rotina, já no outono de sua vida, vê-se que é tarde demais para reviver possibilidades deixadas para trás.

As duas horas de filme não soam maçantes. Ainda que percorra um longo caminho que é a vida de Harry (nome que faz lembrar também de “Desconstruindo Harry”, de Woody Allen), o roteiro é redondo. Sem spoilers sobre o final, cada um que tire as suas conclusões. Mas o que pode parecer um final feliz nem sempre o é, e ficam várias reflexões depois do último fade out. Mesmo não tendo lido o romance de John P. Marquand (vencedor do Pullitzer em 1938 por “The Late George Apley”), o longa parece ter sido uma boa adaptação para as telas.

Robert Young é famoso pelo seu trabalho na televisão, como nas séries “Papai Sabe Tudo” e “Marcus Welby M.D.”; contudo, o ator trabalhou em cerca de 90 filmes durante o seu período ativo no cinema. Através de “Sol de Outono”, é possível atestar o seu talento e a sua versatilidade como ator. Depois de anos fazendo personagens superficiais em filmes B esquecíveis ou inúmeros coadjuvantes de filmes A, Young teve enfim uma oportunidade de brilhar como o principal em um filme classe A da MGM. E esse foi um papel desafiador, pois Harry está presente em todo o filme — Vidor filmou a obra de modo que tudo é mostrado e visto de acordo com a perspectiva do protagonista. Não há cenas em que não esteja presente (só alguns segundos até que entre pela porta, no máximo); as cenas de telefone sempre o mostram focalizado no centro da ação, enquanto ele ouve a outra pessoa do outro lado da linha.

Certamente Vidor escolheu Young por ter gostado da performance do ator no filme que realizaram juntos no ano anterior, “Bandeirantes do Norte” (Northwest Passage, 1940). A escalação de Lamarr ia totalmente contra o típico estereótipo de mulher glamourosa que Hedy estava acostumada a interpretar; novamente, Vidor havia trabalhado também com a atriz no ano anterior, na comédia de espionagem “Inimigo X” (Comrade X, 1940, que muito bebeu da fonte de “Ninotchka”). Ciente de que era vista apenas como uma mulher bonita e elegante, Hedy Lamarr uma vez disse: “Qualquer mulher pode ser glamourosa, basta ficar parada e parecer estúpida”. Dos ótimos coadjuvantes, vale a menção de Van Heflin, como o cínico e debochado amigo de Harry, e Charles Coburn como o pai austero e conservador do protagonista, que ainda assim rende momentos divertidos e emocionantes.
É sempre revigorante ver filmes assim mais intimistas, sobre pessoas comuns tendo epifanias, questionamentos e conflitos pessoais tão humanos, independente dos perfis e dos contextos. Afinal, todos temos que fazer escolhas difíceis na vida, e essas acabam por traçar todo o nosso destino. E no meio do caminho somos forçados a deixar coisas e pessoas que amamos para trás, passando por cima de ideais, sonhos e esperanças. É a vida… Maçante, decepcionante, mas é o que tem para hoje: o agora. De ontem ficam só lembranças, como flores ou folhas mortas dentro de um livro velho e esquecido — mas nunca jogado fora.

Recentemente legendei o filme e postei tanto no site russo OK quanto o no fórum brasileiro Making Off. Espera-se que esse filme e os artistas envolvidos sejam apreciados como merecem.
Link do OK (legenda embutida): https://ok.ru/video/6872597072465
FICHA TÉCNICA:
Título: Sol de Outono
Título original: H.M. Pulham Esq.
Diretor: King Vidor
Ano: 1941
Duração: 119 minutos
Gênero: Drama
Estúdio: MGM (Metro Goldwyn Mayer)
Elenco: Robert Young, Hedy Lamarr, Ruth Hussey, Van Heflin, Charles Coburn, Bonita Granville, Fay Holden e outros
Baseado em livro homônimo de John P. Marquand
Distribuidora: Warner Archive