Quando o cinema e a telenovela brasileira se encontram

Pedro Dantas
42 min readJun 26, 2021

Não é de hoje que o cinema serve de fonte de inspiração para os mais diversos meios de cultura popular. No Brasil com as novelas não poderia ser diferente. A telenovela brasileira se consolidou como uma das maiores e mais fortes marcas nacionais do país, talvez só atrás mesmo do futebol. Trata-se de um produto tão particular da cultura brasileira que consegue alcançar o sucesso e a consagração em todos os cantos do mundo. A Escrava Isaura (Gilberto Braga, 1976), baseada no romance de Bernardo Guimarães, por exemplo, seguiu por muito tempo como a novela brasileira mais vendida, sendo exportada para mais de 80 países e fez de Lucélia Santos uma estrela adorada internacionalmente. Avenida Brasil (João Emanuel Carneiro, 2012), perto de completar 10 anos de sua produção, segue agora no primeiro lugar e já foi vendida para 125 países e dublada em 19 línguas, em média.

Lucélia Santos e Edwin Luisi em A Escrava Isaura, de 1976 — uma das novelas brasileiras mais famosas de todos os tempos. Lucélia até hoje é reverenciada em países distantes como a Rússia e a China
Avenida Brasil bebeu muito da fonte da série americana Revenge em seu plot principal: a vingança de Rita/Nina (Debora Falabella) contra a inescrupulosa Carminha (Adriana Esteves) que arruinou o pai da garota e a fez parar num lixão

Como grande entusiasta de cinema e de televisão que sou, resolvi fazer um post dedicado às inúmeras referências dos grandes clássicos do cinema presentes nas novelas brasileiras. Vejo muito as pessoas comentarem informalmente por aí, também em alguns cantos da internet ou até mesmo em alguns textos mais acadêmicos vez e outra, porém ainda acho que é um campo a ser mais explorado e pesquisado, ainda mais por admiradores tanto da Sétima Arte como do Audiovisual Brasileiro.

Norma Desmond , de Sunset Boulevard, foi referenciada mais de uma vez com seu quote clássico “Estou pronta para o meu close-up”, principalmente por Aguinaldo Silva. Outra favorite é Blanche DuBois, de Um Bonde Chamado Desejo com sua famosa frase “Eu sempre dependi da bondade de estranhos” (abaixo).
Vivien Leigh levou sua segunda estatueta do Oscar em 1952 pela sua performance no filme dirigido por Elia Kazan, baseado na peça de Tennessee Williams
“Não peça a lua, nós temos as estrelas”, outra frase muito reproduzida em novelas, direto do clássico A Estranha Passageira (dir. Irving Rapper, 1942), com Bette Davis e Paul Henreid acendendo os dois cigarros para cada um
A personagem de Gene Tierney em Amar foi minha ruína (Leave her to Heaven, John M. Stahl, 1945) é até hoje uma grande fonte de ideias malignas para as vilãs da TV: ciúme doentio, quedas de escada propositais e afogamento de crianças indesejadas.
Chocolate com Pimenta bebeu não só da peça A Visita da Velha Senhora no seu enredo de vingança (que também gerou Fera Radical e outras novelas), mas também em inspirações vindas de Carrie A Estranha (cena do balde de tinta no baile, diferente do sangue de porco do filme), A Estranha Passageira, estrelado por Bette Davis (o patinho feio que vira um cisne — Aninha que passa de moça pobre e atrapalhada à mulher refinada da alta sociedade) e E O Vento Levou (cena em que ela jura se vingar de todos que a humilharam, diferente de Scarlett O’Hara que jurou nunca mais passar fome outra vez após a Guerra Civil americana). Em cena Mariana Ximenes como “a viúva alegre” Ana Francisca e a vilã Jezebel de Elizabeth Savalla.
A Megera Domada de Shakespeare é provavelmente um dos textos mais usados para adaptações, já tendo rendido inúmeras versões em cinema e TV. Na telinha a adaptação mais lembrada com certeza é O Cravo e a Rosa, remake de O Machão da Tv Tupi.
A Gata Comeu (1985), também de Ivani Ribeiro, era quase uma releitura moderna de A Megeda Domada: uma jovem rica, desmiolada e excêntrica (Jô Penteado, Christiane Torloni) colecionava noivos ricos mas só se apaixona mesmo por um professor humilde e de gênio forte (Professor Fábio, Nuno Leal Maia). A novela foi um remake de A Barba Azul, com Eva Wilma e Carlos Zara, da Tv Tupi de 1975
A novela infanto-juvenil Era uma Vez… (Walter Negrão, 1998) tinha toques de A Noviça Rebelde, Pinóquio, O Mágico de Oz, entre outras histórias familiares atemporais

É sempre muito divertido perceber os paralelos entre o cinema e a televisão, muito mais frequentes do que se pode imaginar. E mais do que apenas curiosidade, podemos chegar a muitas reflexões acerca das semelhanças e diferenças entre os dois meios de comunicação. Comparando exemplos de clássicos cinematográficos com algumas produções televisivas sucessos de audiência no Brasil, é possível entender como e de que maneira a arte do melodrama é desenvolvida em cada um deles. Lembrando também que o recorrente uso de referências, homenagens e paródias de obras clássicas, dos mais variados meios, já é uma marca da arte e do entretenimento da contemporaneidade.

As aberturas de novela também recorreram demais ao cinema: O Dono do Mundo, de Gilberto Braga, tinha a famosa cena de Charles Chaplin dançando com um globo em O Grande Ditador — só que dentro do globo havia mulheres, em referência ao protagonista womanizer Felipe Barreto da novela. Já Final Feliz, de Ivani Ribeiro, mostrava na sua vinheta uma série de cenas clássicas de beijo do cinema (ironicamente, constatei que a maioria dos filmes mostrados na abertura (Casablanca, E o Vento Levou, Nasce Uma Estrela, etc) não tem final feliz, ao contrário do que diz o título da novela, mas isso é só um detalhe, né? hahaha)
LP nacional de Final Feliz (1983/1984)

Aqui nesse texto tentei reunir o máximo de casos possível de inspiração cinematográfica nas telenovelas. Grande parte eu pude assistir (na internet, nas reprises de TV aberta ou Canal Viva), e outra parte de ver apenas trechos ou de muito pesquisar na Internet e em livros sobre o tema (recomendo muito os seguintes Almanaques: Almanaque da TV Globo (organizado por Marcel Souto Maior, com fonte de pesquisa Memória Globo); Almanaque da TV (organizado por Bia Braune & Rixa) e o Almanaque da Telenovela Brasileira (de Mauro Alencar e Nilson Xavier, organizador do site Teledramaturgia que foi um dos meus lares da Internet desde sempre quanto o assunto é televisão). O Guia Ilustrado TV Globo (que ganhei numa promoção do Orkut há muitos anos hahaha) também me ajudou.

Almanaque da Tv, de Bia Braune e Rixa
Almanaque da Tv Globo, organizado por Marcel Souto Maior
Almanaque da Telenovela Brasileira, de Nilson Xavier (dono do site Teledramaturgia)
A inspiração na sétima arte não fica só nos enredos. Os figurinos e modas muito auxiliam nas produções de arte para os guarda-roupas dos personagens e reconstituição de época. Um exemplo é Força de um Desejo (1999), que procurou referências na imperatriz Sissi da Áustria, vivida no cinema por Romy Schneider, e na versão de Greta Garbo de A Dama das Camélias (George Cukor, 1936). Na foto Fábio Assunção com Malu Mader, protagonistas da história baseada em três romances de Visconde de Taunay: A Retirada de Laguna, Inocência e A Mocidade de Trajano.
Garbo em Camille — considerada por muitos a sua melhor performance dramática

Uma forma de conhecimento e reflexão, sim, mas acima de tudo esse post é feito mais por diversão, pois é sempre muito mágico, pelo menos para mim, quando dois meios que marcaram tanto a minha vida, como é o cinema, a maior paixão da minha vida, e a televisão, que apesar dos muitos pesares tem uma dramaturgia muito rica, marcou a minha história e com o tempo eu soube apreciar e hoje enxergar sob novas perspectivas. Muitos podem ver a TV apenas como um veículo menor e menosprezar suas produções, mas mesmo sendo o cinema minha paixão maior, as novelas têm espaço de sobra na minha memória afetiva — e creio que na memória de milhões de pessoas no Brasil e no mundo inteiro.

Antes de discorrer sobre as novelas em si, gostaria de fazer um breve panorama da teledramaturgia ainda no seu início.

O INÍCIO DA DRAMATURGIA NACIONAL

O magnata Assis Chateaubriand, um dos grandes responsáveis pelo início da televisão no Brasil

A TV Tupi, primeira emissora de televisão do Brasil, foi inaugurada com muita festa em 18 de setembro de 1950. Curiosamente, num também dia 18, mas de 1980, a concessão do canal foi cassada pelo governo militar. Apesar das várias teorias da conspiração sobre perseguição política, que são possíveis, a emissora estava naufragada em dívidas e sofrendo com a concorrência dos outros canais. Grande parte do acervo existente (que sobreviveu aos incêndios e fitas regravadas) pertence à Cinemateca Brasileira (atualmente jogada às traças), Arquivo Nacional (não sei detalhes de conservação e disponibilidade) e TV Cultura (que também gere muito mal o acervo). Algumas fitas raras são acessível no banco virtual da Cinemateca, o BCC. Você pode acessar em: http://cinemateca.org.br/acesso/banco-de-conteudos-culturais/

A TV Excelsior, outra emissora marcante dessa época, realmente foi perseguida pela ditadura militar, pois não foi conivente com o golpe militar e seu jornalismo tentou como pôde não ser chapa-branca como Globo e cia. O canal de 1960 também sofreu diversas crises e terminou fechando as portas só dez anos depois, em 1970.

21 de dezembro de 1951: vai ao ar na TV Tupi Sua Vida Me Pertence, que estreia como a primeira telenovela do Brasil, estrelada por Walter Foster e Vida Alves. A atriz, uma das grandes pioneiras da TV, foi protagonista de três grandes momentos da tv: a primeira novela, o primeiro beijo (entre ela e Walter) e também o primeiro beijo gay da história da telinha (com a atriz Georgia Gomide na novela Calúnia, de 1966)
25499 Ocupado, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, foi a primeira novela diária da nossa televisão, com 42 capítulos na faixa das 19h30 da Excelsior em 1963
A Deusa Vencida, de 1965, um dos maiores sucessos da Excelsior
O primeiro beijo gay da TV foi entre mulheres: Vida Alves e Geórgia Gomide em Calúnia (baseada na peça The Children’s Hour de Lillian Hellman), TV Tupi, 1966.

Nos primórdios da TV, as novelas eram muito fantasiosas e bem fora da realidade contemporânea, ou mesmo puros teleteatros de obras consagradas do teatro e da literatura. Até já existiam algumas novelas contemporâneas surgindo pelos canais, mas ainda muito primitivas, de ar “mambembe” e com raros textos originais. Na Globo dos anos 1960 sob direção da excêntrica Gloria Magadan, as histórias eram geralmente inspiradas no gênero capa e espada, muito difundido no cinema clássico por estrelas como Errol Flynn, o eterno Robin Hood. As tramas de novelas como O Sheik de Agadir e Rosa Rebelde se passavam em castelos e masmorras, tinham enredos mirabolantes, locações fictícias na Europa, na Arábia ou até no Japão, e muitas vezes não tinham nexo algum, mas foram conquistando o público cada vez mais ávido por entretenimento no conforto de sua casa. Foram surgindo os grandes ídolos da telinha que marcaram a história da TV brasileira: Tarcísio e Glória, Marília Pêra, Yoná Magalhães, Leila Diniz, Francisco Cuoco, Regina Duarte e assim por diante.

Baseada em Taras Bulba do escritor russo Nikolai Gógol, no maior estilo de filmes das Arábias, O Sheik de Agadir fez muito sucesso. Entre múltiplos assassinatos cometidos por um serial killer chamado ‘’O Rato’’, a história era sobre um triângulo entre um sheik (Henrique Martins), uma bela jovem (Yoná Magalhães) e um oficial do Exército Francês (Amilton Fernandes). A novela levou Leila Diniz e outros atores ao estrelato.
Tarcísio e Glória na novela Rosa Rebelde, de 1969. O casal 20 numa das últimas produções mexicanizadas da emissora.
A Gata de Vison, por sua vez, só pela propaganda dá para ver que se inspirava nos filmes de gângster muito típicos da Warner Bros. nos anos 30 e 40 com Edward G. Robinson, James Cagney e Humphrey Bogart

Mas foi com Véu de Noiva de Janete Clair em 1969 e Verão Vermelho de 1970, de Dias Gomes que a dramaturgia global se atualizou de vez. Foi na marcha de Beto Rockfeller da TV Tupi, sucesso estrondoso, que as novelas passaram a se aproximar mais da realidade e da vida cotidiana. Sem mais castelos e terras distantes, o cenário agora era a cidade grande, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro; os personagens, mesmo que ainda estereotipados por vezes, estavam mais próximos das pessoas comuns, com cada vez menos idealismos. A trilha sonora agora passou a ser os grandes hits do momento ou músicas especialmente compostas para as tramas, e não só temas sinfônicos e instrumentais de orquestras.

Luis Gustavo como o anti-herói Beto Rockfeller que conquistou o Brasil (1968–1969)
Em Pecado Capital (Janete Clair, 1975, dir. Daniel Filho), a Lucinha de Betty Faria era um exemplo de protagonista feminina que quebrava com o estereótipo de mocinha indefesa que precisava de um homem, se mostrando muito independente e cheia de personalidade
Cláudio Marzo e Regina Duarte em Véu de Noiva (1969), a primeira novela moderna da Globo
  1. SELVA DE PEDRA (Janete Clair, 1972) x UM LUGAR AO SOL (A Place in the Sun, dir. George Stevens, 1951)

Vindo já como uma bem-sucedida autora de radionovelas, Janete Clair se consolidaria na TV como a rainha do folhetim e dona do horário nobre da Globo. Sua estreia na emissora em 1967 foi turbulenta, quando assumiu o comando de Anastácia, A Mulher Sem Destino e provocou logo um terremoto que matou metade dos personagens para tentar salvar a novela do fracasso, e mesmo sem grande sucesso conseguiu desencalhar a trama do flop.

Anastácia, baseada num folhetim francês e com a rainha Leila Diniz protagonista, era também inspirada na história da grã-duquesa Anastásia Romanov que teria supostamente sobrevivido ao massacre dos Romanov (era o que se acredita até o fim do século XX). O que já havia inspirado filme com Ingrid Bergman e muito depois uma adorável animação da Fox. Claro, cada produção com enfoques diferentes.
Pouco lembrada como atriz, Leila Diniz foi uma das grandes estrelas da TV nos anos 60. Ela estrelou a primeira novela da emissora: Ilusões Perdidas. Também fez muito sucesso em O Sheik de Agadir, fenômeno dos anos 60. Com o avanço da ditadura militar e a personalidade ousada de Leila causando polêmicas nacionais, a partir dos anos 70 a Globo cortou relações com a atriz e a dispensou. (reza a lenda que com figurinos pomposos como esse da foto, Leila saía para a praia ou para o bar com os amigos, pois tirar e se arrumar de novo levaria muito tempo).
A maga das 20 horas: Janete Clair

Após seu bom desempenho na condução de Anastácia, Janete Clair escreveu uma novela atrás da outra, principalmente no horário nobre da casa, e conquistou sucessos estrondosos. A autora, como vários colegas, também nunca escondia suas inspirações cinematográficas e literárias.

O casal de autores Dias Gomes e Janete Clair, ambos responsáveis por inúmeros clássicos da nossa teledramaturgia. Ela: Selva de Pedra, Irmãos Coragem, Pecado Capital, O Astro, Pai Herói. Ele: Saramandaia, O Bem Amado, Roque Santeiro…

Em Irmãos Coragem, por exemplo, a trama foi bem rasamente inspirada em Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e em Mãe Coragem, de Brecht. E a personagem de Glória Menezes que tinha três personalidades, Lara/Diana/Márcia, lembra muito o drama principal de As Três Mascaras de Eva, protagonizado pela atriz Joanne Woodward (a eterna esposa de Paul Newman).

A personagem de Glória Menezes, Lara, sofria de transtorno de múltipla personalidade, e ora também era Diana e ora também Márcia. Para ajudar o público a notar a transformação de uma personalidade a outra, Glória Menezes dava um estalo com a língua e uma piscadela, que juntos viraram sua marca.
Joanne Woodward deu vida à história real de uma mulher que desenvolveu três personalidades: Eve White, Eve Black e Jane. A atriz venceu o Oscar de Melhor Atriz pela performance

Selva de Pedra, escrita por Janete, é talvez a maior novela brasileira de todos os tempos. Reúne praticamente todos os elementos que consagraram o gênero e inspirou praticamente tudo que foi feito depois de sua exibição. Temos aqui um homem humilde que sonha em vencer na vida, com cenário no Rio de Janeiro — que é a selva de pedra traiçoeira, frenética e desenfreada, palco de ascensões e de quedas, que faz os homens sonharem com o poder e a riqueza.

É o ‘’sonho americano’’ que fez Theodore Dreiser escrever a obra-prima Uma Tragédia Americana (An American Tragedy, de 1925), a qual serviria de inspiração tanto para Um Lugar ao Sol como para Selva de Pedra, e antes dos dois houve uma adaptação da obra em 1931, com Phillips Holmes, Sylvia Sidney e Frances Dee nos papéis principais.

Primeira edição do romance americano

No filme de George Stevens, Montgomery Clift vive George Eastman, um jovem de origem humilde e bastante ambicioso que tem um tio rico na capital. Ele consegue um emprego subalterno na empresa do tio e se envolve com a humilde Alice (Shelley Winters), mas o rapaz não está contente, e quer subir na vida o mais depressa possível.

Clift e Winters em cena

Mas o que desperta a atenção no rapaz acima de tudo é a bela herdeira Angela, vivida pela jovem encantadora Elizabeth Taylor. Os dois se apaixonam perdidamente, e logo parece que todos os sonhos de George estão na palma de sua mão. Quem não viu o filme, atenção que aí vai spoiler:

George ascende em sua posição e sonha em casar com Angela, mas seus planos são ameaçados pela sua namorada Alice, que está grávida dele e exige que se casem o mais depressa possível. Ela ameaça contar que o filho é de George, arruinando todos os seus sonhos. Alice se mostra uma pedra no caminho de George, e ele cogita matá-la afogada em um rio enquanto os dois fazem um passeio de barco. O passeio termina em tragédia e o desfecho do filme é nos tribunais: George é condenado à morte. O afogamento de Alice se transforma em uma questão moral com toques de tragédia grega: a moça caiu do barco e se afogou de tanto medo que estava do namorado; mesmo não tendo matado de fato a jovem, George pensou em Angela e não prestou socorro a Alice. De qualquer forma, o tribunal o considera assassino e o condena à cadeira elétrica. *fim dos spoilers*

Se ainda não viu, então fica a dica deste que Chaplin considerou “o maior drama de todos os tempos sobre a América”.

A novela brasileira por sua vez pegou a base da história para si, somando com outras ideias e costumes típicos do Brasil da época. Aqui o protagonista é Cristiano Vilhena (Francisco Cuoco), um rapaz humilde que trabalha ao lado de seus pais pobres tocando bumbo no meio da praça, sem grandes perspectivas. Ridicularizado pelos outros rapazes, Cristiano se envolve numa briga com um deles, Gastão Neves, que estava armado e acaba morrendo por conta da própria arma. A única testemunha do incidente é Simone (Regina Duarte), que viu Cristiano apenas se defender de Gastão. Com medo de ser acusado por assassinato, Cris resolve fugir e tentar a sorte no Rio, e consegue um emprego no estaleiro de seu tio rico, Aristides (Gilberto Martinho). Simone, uma artista plástica, também vai para o Rio em busca de novas oportunidades, e lá os dois se apaixonam, se casam e vão viver na modesta pensão da ex-vedete Fanny (Heloísa Helena).

Regina Duarte e Francisco Cuoco no auge de suas carreiras na TV como o casal Simone e Cristiano em Selva de Pedra (1972)

Mas a ambição de Cristiano não o deixa se contentar com a vida simples que leva ao lado da esposa. Ele quer subir cada vez mais na empresa e sonha com uma vida de riqueza e poder igual a de seu tio. Simone, apaixonada, sofre com a ambição do marido e no início aceita o machismo e revolta do marido. Cristiano conhece e se encanta pela herdeira Fernanda (a linda e inesquecível Dina Sfat). Apesar de ser noiva do primo dele, Caio (Carlos Eduardo Dollabella), Fernanda se apaixona perdidamente por Cris.

Caio e Fernanda se unem para destruir Cristiano. Ele por inveja e ciúmes; ela por ter sido abandonada no altar por Cris

Daí que Cristiano fica dividido entre o amor puro de Simone e o charme do poder do dinheiro de Fernanda, a quem ele na verdade não ama. Ele esconde que é casado com Simone, e na família é cada vez mais certo o seu noivado com Fernanda. Simone vira uma ameaça para os planos ambiciosos de Cris, e então surge a possibilidade de tirá-la de seu caminho — assim como Montgomery Clift desejava casar com a herdeira Taylor e se livrar da pobre Winters.

Como no filme, o protagonista fica dividido entre duas mulheres, uma representa a vida simples e a outra a riqueza; e almejando a segunda, a primeira se torna um obstáculo. Se no filme o rapaz era apaixonado pela herdeira, aqui ele apenas se deixa seduzir por ela, mas na verdade seu “verdadeiro amor” é sua esposa Simone — afinal novela clássica gosta mesmo é de heróis e vilões bem definidos com direito a um happy end para os bons.

O triângulo amoroso da novela é entre Cris (Cuoco), Simone (Regina) e Fernanda (Dina)

É tamanha a obsessão de Cristiano para subir na vida que surge a ideia de matar Simone, proposta pelo vilão Miro (Carlos Vereza), seu amigo mau-caráter que se mostra um homem perigoso.

Na novela, Cristiano se atormenta com a ideia de matar a mulher, mas no fundo não é o que ele realmente quer pois ele a ama. Recai então sobre Miro a insistência em se livrar dela, e é o vilão que realmente leva a ideia a cabo. Ele escreve uma carta para Cristiano sobre sua ideia de matar a mulher de propósito para Simone ler. Assustada achando que Cris quer matá-la, ela foge com a empregada Lena (Tamara Taxman) num Fusca e dispara para longe, mas Miro a persegue. Desesperada, ela perde a direção, o carro capota e explode.

Ao invés de um acidente de barco, aqui ocorre um acidente de carro, porém Simone não morre. Mais folhetim: ela sobrevive e resolve fugir para Paris, recomeçar a vida sob uma falsa identidade: Rosana Reis. Mas para todos, Simone morreu no acidente (o corpo encontrado no carro é o de sua empregada que a acompanhava na perseguição fatal).

Cristiano se torna um homem poderoso, mas solitário, cheio de inimigos e atormentado pela memória de Simone

Cristiano se sente culpado pela tragédia, e fica tão atordoado que resolve desistir de se casar com Fernanda, e a deixa esperando sozinha no altar. A partir dali, Fernanda se fecha para a vida, se torna uma mulher amarga, odiosa e que faz de seu objetivo de vida destruir Cristiano, o homem que a abandonou.

Sempre achei Fernanda uma ‘’vilã’’ fascinante, pois ela chega a dar calafrios com seus delírios. Palmas para a excelente performance de Dina! Christiane Torloni também deu show no remake de 1986.

Nota importante: na sinopse original, Cristiano e Fernanda se casariam. Mas a Censura Federal na época (lembrando que era época de ditadura) considerou o fato de Cristiano se casar mesmo com a mulher viva (Simone dada como morta) seria uma espécie de bigamia. Sendo assim, a autora fez Cristiano abandonar Fernanda e assim ela se transforma numa vilã amarga e obsessiva.

Até no visual Fernanda só usa preto e uma maquiagem pesada, a tal ponto que quando aceita se casar com Caio, ela usa um vestido preto. A herdeira excessiva aqui na novela vira a antagonista, bem distante da herdeira ingênua de Taylor que no filme se solidariza com o grande amor de sua vida antes dele ir para a cadeira elétrica.

Acima: No remake da novela, em 1986, Christiane Torloni viveu a vilã Fernanda. Caio foi vivido por José Mayer. Cristiano e Simone foram vividos por Tony Ramos e Fernanda Torres (abaixo, com Torloni à direita).

Fernanda Torres foi muito criticada pela sua atuação na novela na época de exibição. A atriz ficou décadas sem atuar em novelas, preferindo o cinema, séries e também escrever e produzir

Dessa fase em diante, a novela vira um dramalhão dos bons. De volta ao Brasil, Simone mantém sua identidade de Rosana Reis, uma bem-sucedida artista plástica. Ela faz questão de esquecer a ingênua e submissa Simone que um dia foi. Cristiano, agora dono do estaleiro da família, vira um grande homem de negócios, mas frustrado pela perda de seu grande amor. O poder com que tanto sonhou não o faz feliz.

Em uma exposição de arte, Cris reconhece Simone, mas ela diz ser Rosana Reis, irmã de Simone, e finge não conhecê-lo

Estamos falando de uma época em que a televisão praticamente dominava o país, e as pessoas literalmente paravam para acompanhar os desenlaces das tramas que conseguiam parar o Brasil. Foi Selva de Pedra que conseguiu atingir os inimagináveis 100% de audiência (!) na transmissão do capítulo 152, no dia 4 de outubro de 1972, quando Simone finalmente é desmascarada. Todos descobrem que ela não morreu no acidente de carro, e desde então se escondeu sob a identidade falsa de Rosana Reis (nome de sua irmã morta). Mas Simone e Cris ainda estavam muito longe do final feliz para uma história de amor tão conturbada.

Nessa confusão toda, mais para a reta final da novela, a novela volta a se assemelhar com Um Lugar ao Sol, pois a história vai terminar no tribunal. Como já mencionado, uma possível “culpa’’ concreta de Cristiano na “morte’’ de Simone é neutralizada, ainda mais que ela nem morreu de fato, e assim o crime pelo qual ele termina por responder num julgamento é o do início da novela, a morte do rapaz com quem ele brigou e que ocasionou a mudança do interior para o Rio de Janeiro. Esse episódio da briga a autora retirou de uma história real que ela encontrou num jornal da época.

Entre trancos e barrancos, amor e ódio, mágoas e ressentimento, Simone e Cris terminam por se acertar. Mas Fernanda, cada vez mais desequilibrada, prende Simone numa casa abandonada para que ela não deponha no julgamento, pois ela é a única testemunha que pode inocentar Cristiano. Simone fica dois meses presa por Fernanda, que enlouquece de vez e termina em um manicômio sob a proteção incondicional de Caio, que a ama mais que tudo. E enfim Simone é encontrada e libertada. Totalmente debilitada, num forte apelo emocional, a moça vai depor numa cadeira de rodas.

Simone em cativeiro com Fernanda, desequilibrada

Em seu texto Sirk: do cinema à TV , presente no catálogo da mostra Douglas Sirk — O Príncipe do Melodrama, a acadêmica Esther Hamburger analisa muito bem as duas cenas de julgamento cruciais de Palavras ao Vento (Douglas Sirk, 1956) e Selva de Pedra em oposição. Apesar da diferença de contexto narrativo, já que Selva de Pedra lembra muito mais Um Lugar ao Sol em sua base, é interessante a comparação das duas cenas que são cruciais quanto ao destino do protagonista.

‘’Embora o contexto narrativo seja diferente, as duas cenas são muito parecidas. Ou melhor, inspiram sensações fortes e semelhantes; a emoção figurada plasticamente no rosto angustiado da personagem que depõe. Nesse momento ela é alvo do olhar de dois públicos. Ela atrai as atenções das outras personagens do tribunal e do público espectador em casa ou no cinema. No filme, a emoção congela na superfície do rosto sofrido, pressionado pelas forças invisíveis dos ditames morais a proferir a sentença mais justa, independente de seus interesses ou posicionamentos pessoais. Na novela, a personagem chega para depor em uma cadeira de rodas, seu corpo depauperado pela ação invejosa da vilã enlouquecida. As forças dos sentimentos atuam sobre o corpo que recebe as marcas da maldade. O apelo da cena é visceral. Os signos são óbvios e exagerados. Os sentimentos se materializam na superfície. Em um universo de signos ‘’puros’’, estamos livres para pensar a inter-referencialidade (em vez da relação entre significantes e significados).’’

E é claro que o final numa novela não poderia deixar de ser feliz. Cristiano e Simone enfim ficam juntos e partem num navio, o único que ele tem agora depois de largar o estaleiro, para reconstruir sua vida ao lado de sua amada. Tudo isso ao som de Rock and Roll Lullaby, de B.J. Thomas, tema do casal.

2. CARINHOSO (Lauro César Muniz, 1973) X SABRINA (Billy Wilder, 1956)

Regina Duarte strikes again nessa novela das 19h que foi um grande sucesso, exibida de julho de 1973 até janeiro de 1974. Tanto o filme de Audrey Hepburn como a novela de Regina Duarte se basearam na peça Sabrina Fair — A Woman of the World, de Samuel Taylor. Ela estreou na Broadway em 1953 com Margaret Sullavan e Joseph Cotten nos papéis principais. Mas na adaptação para o cinema escolheram William Holden, Humphrey Bogart e a doce (minha diva-mór) Audrey Hepburn para o papel de Sabrina. E na novela o trio ficou Regina Duarte, Marcos Paulo e Cláudio Marzo — o nome da novela é pela música Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, que foi o tema de abertura.

Margaret Sullavan e Joseph Cotten fizeram par na primeira montagem de Sabrina Fair, um grande sucesso

A história é praticamente a mesma, só que na novela a personagem principal recebeu o nome de Cecília. Tanto Sabrina como Cecília são filhas de um empregado de uma grande mansão onde vive uma família muito rica. No filme Sabrina é apaixonada por David (Holden), e na novela Cecília por Eduardo (Marcos Paulo), ambos os dois caras são do tipo inconsequente que não leva a garota humilde a sério. De corações partidos, Sabrina do filme vai para Paris estudar culinária, e Cecília da novela vai para Nova York trabalhar como aeromoça.

Anos depois, elas voltam poderosas, sofisticadas e cheias de charme, “women of the world”. No filme, Sabrina continua a fim de conquistar David, apesar dele ser noivo de Elizabeth (Martha Hyer). Mas apesar do clima esquentar entre os dois, o irmão de David, Linus (Humphrey Bogart), quer separar os dois apenas visando os negócios da família, que ficaria prejudicada com o possível casamento entre eles. Mas Linus se apaixona por Sabrina, e ela também por ele afinal.

Cecília versão cosmopolita entre dois amores

Na novela não é muito diferente. Cecília, de volta ao Rio, quer reconquistar Eduardo, mas como num novelo de 174 capítulos que se preze, ela terá que enfrentar as armações do argentino Santiago Morales (Herval Rossano), apaixonado por Cecília, e a ex-namorada de Eduardo, Marisa (Débora Duarte). Mas o obstáculo principal é o irmão de Eduardo, Humberto (Cláudio Marzo), que esconde uma paixão por Cecília. A moça, como a Sabrina do filme, fica dividida entre os dois irmãos, mas no fim ela descobre que o grande amor da sua vida é Humberto. E assim Regina e Cláudio emplacaram o quarto casal de sucesso deles na telinha.

Cecília e Eduardo (Marcos Paulo)
Cecília e Humberto (Cláudio Marzo)

3. MULHERES DE AREIA (Ivani Ribeiro, 1973 e 1993) x UMA VIDA ROUBADA (A Stolen Life, dir. Curtis Bernhardt, 1946)

Ivani Ribeiro, dama da TV, autora de sucessos incontestáveis como Mulheres de Areia, A Gata Comeu e A Viagem

Ivani Ribeiro, quando resolveu escrever Mulheres de Areia, se inspirou numa antiga radionovela sua, As Noivas Morrem no Mar — que por sua vez foi inspirada no filme Uma Vida Roubada, estrelado duplamente pela rainha Bette Davis na pele de irmãs gêmeas. Somando também com o enredo de uma outra novela sua da TV Record, O Espantalho, Ivani assim criou o remake de Mulheres de Areia, que tanto na Tupi nos anos 70 como em 1993 na Rede Globo fizeram grande sucesso.

Quem é quem?
Não se enganem: remakes existem desde os primórdios do audiovisual. Stolen Life já era filme em 1939 na Inglaterra estrelado por Elisabeth Bergner e Michael Redgrave — e a original história vem do romance homônimo de Karel J. Benes

No filme hollywoodiano dos anos 40, estrelado e também produzido por Davis (seu único papel como produtora na indústria), temos a doce e solitária Kate que se apaixona por Bill (Glenn Ford). Os dois se conhecem num farol de cidade à beira-mar e a atração é instantânea. Depois de se reencontrarem eles começam um relacionamento. Mas a felicidade de Kate é interrompida quando sua irmã gêmea Pat resolve tomar o homem da sua irmã para si. Primeiro fingindo ser Kate, depois seduzindo o rapaz com todo o sex appeal que falta na irmã, e assim Pat consegue casar com Bill, para o sofrimento de Kate.

Preciso nem dizer que Kate é a virtuosa enquanto Pat a fria e calculista. Com todo o seu talento, Bette consegue nos dizer quem é quem apenas com o olhar! Na época até havia efeitos interessantes, mesmo que longe da tecnologia que temos hoje à mão.

A gêmea má (sempre fumante e dada aos excessos no álcool) finge ser a boazinha para agarrar o bom partido. Um desafio para a intérprete é representar não apenas dois, mais quatro papéis: a boa, a má, a boa fingindo ser a má e a má fingindo ser a boa.

Na trama de Ivani Ribeiro, as gêmeas Ruth e Raquel (Glória Pires) se apaixonam por Marcos (Guilherme Fontes), um jovem rico e um tanto imaturo. Ele conhece primeiro Ruth, mas Raquel logo o seduz e passa a irmã gêmea pra trás. Raquel, mais por interesse e atração, consegue se casar com Marcos. Ruth fica arrasada e sofre resignada por muito tempo.

Eva Wilma na versão original da Tupi de 1973 como Ruth e Raquel
Glória Pires na versão da Globo de 1993, exatos 20 anos depois do original
Tonho da Lua, jovem com problemas mentais que fazia esculturas de areia, era amigo e confidente de Ruth e inimigo/alvo das maldades de Raquel. No filme de Bette Davis a gêmea boa conta com um confidente homem, mas ele é um pintor excêntrico, interpretado por Dane Clark.

O grande plot twist nas duas histórias é um acidente de barco com as duas irmãs. A gêmea boa se salva, enquanto a gêmea má desaparece e é dada como morta. No filme de Bette Davis, a gêmea má realmente morre; na novela, Raquel se salva e fica muito tempo escondida e tramando uma vingança contra todos os seus inimigos — a irmã inclusa, principalmente.

Bette Davis quase morreu afogada de verdade na sequência do acidente, gravada num tanque cheio d’agua

No filme, Davis toma o lugar da irmã e tem de lidar com todos os conflitos da irmã, desde um amante maldoso até um já descontente Bill, que enfim descobre gostar mesmo de Kate. No fim, após muitos desencontros e intrigas, toda a verdade é revelada e os dois vivem felizes para sempre.

Na novela, a coisa é mais complicada. Tonho da Lua dá a ideia de Ruth se fazer passar por Raquel e ser feliz com Marcos (ela tinha a aliança de Raquel na sua mão, o que a faz ser identificada como Raquel já que as duas usavam o mesmo maiô). Ruth então assume a identidade da irmã, mas tem que lidar com o desprezo e ira dos inimigos de Raquel (quase todo o elenco da novela, risos), além de tentar conquistar Marcos, que já quer se separar. Nesse meio tempo, Ruth se torna uma pessoa mais assertiva e menos passiva diante da vida.

Raquel sobrevive ao acidente e trama uma vingança ardilosa contra todos, especialmente sua irmã que tomou seu lugar

Aos poucos, Marcos descobre a verdade e vibra por estar ao lado de Ruth, além de outros personagens, como a sogra Clarita (Susana Vieira) que vira sua aliada. Mas Raquel está viva e resolve armar uma vingança maquiavélica contra a irmã que tomou seu lugar: primeiro, ela mata o ex-amante Wanderley (Paulo Betti) com uma arma de Marcos para o incriminar. Para livrar o amado da condenação, Ruth (fingindo ser Raquel) assume a autoria do crime e vai parar no tribunal (com Raquel disfarçada na plateia acompanhando). No meio do tribunal Ruth não aguenta a pressão e revela que não é Raquel, para a surpresa de todos. No fim das contas, descobrem que a assassina mesmo foi outra pessoa: Vilma (Denise Milfont), também amante do morto, que quebrou uma garrafa na cabeça de Wanderley antes de Raquel dar o tiro nele — ou seja, ele já estava morto antes do tiro, o que invalidou toda a tramoia de Raquel.

Livres da prisão, Marcos e Ruth pensam poder enfim viver felizes e em paz. Mas Raquel não se dá por vencida: ela decide retornar em grande estilo e infernizar a vida do casal, se negando dar o divórcio, armando flagrantes na cama pra separar os dois, entre outras coisas. Enfim, Raquel acaba morrendo num acidente de carro (na versão original é assassinada com um tiro) e só então Marcos e Ruth podem viver sossegados e felizes.

A SUCESSORA (Manoel Carlos, 1979) x REBECCA (dir. Alfred Hitchcock, 1940)

Antes de falar do filme e da novela, vamos primeiro aos dois livros que os inspiraram: A Sucessora, romance brasileiro da escritora Carolina Nabuco (filha do também escritor Joaquim Nabuco), e Rebecca, best-seller da escritora britânica Daphne du Maurier (também autora de Os Pássaros, My Cousin Rachel, etc). Houve uma grande controvérsia (nunca esclarecida) no passado por conta de uma suspeita de plágio envolvendo as duas autoras: ambos os livros possuem uma história semelhante sobre uma protagonista atormentada pela memória da falecida esposa de seu novo marido. Ao chegar em seu novo lar, começam as intrigas e mistérios em torno da “mulher inesquecível”.

Carolina Nabuco (1890–1981), a autora de A Sucessora

Rebecca foi publicado em 1938 e fez enorme sucesso, mais ainda com a adaptação do mestre do suspense Alfred Hitchcock em 1940, com Joan Fontaine e Laurence Olivier nos papéis principais — e ainda por cima levando a estatueta de Melhor Filme no Oscar de 1941. Entretanto, a história de Rebecca é extremamente parecida com a história de A Sucessora, lançado no Brasil discretamente em 1934. Mais do que isso: Carolina Nabuco enviou uma tradução em inglês do livro para um editor inglês na época — que acontecia de ser o mesmo editor de Daphne du Maurier, que começou o seu romance em 1937, publicando-o no ano seguinte. O crítico literário brasileiro Álvaro Lins chegou a comentar nos anos 30 as semelhanças entre as duas obras. A história nunca foi esclarecida de fato e Carolina Nabuco nunca cogitou processar ninguém; entretanto, quando o filme Rebecca chegou ao Brasil, a United Artists tentou fazer com que a autora assinasse um termo mediante compensação financeira confirmando negar qualquer relação do seu livro com Rebecca para evitarem futuras dores de cabeça. Carolina recusou-se a assinar o termo, mas a polêmica ficou por aí mesmo…

Para enrolar mais ainda a treta, dizem que o livro Encarnação, de José de Alencar, por sua vez, também lembra muito a história de A Sucessora. Vixe…

Daphne du Maurier, autora de Rebecca
A história de Rebecca já havia inspirado algumas obras aleatórias como A Sombra de Rebecca (1967) com Yoná Magalhães no papel de uma gueixa à la Madame Butterfly rejeitada que termina a novela praticando um haraquiri (ritual de suicídio dos samurais)

Rebecca se passa na Inglaterra, na região fascinante da Cornualha, querida pela autora Daphne du Maurier (acima o cenário do filme). A Sucessora se passava no Rio dos anos 20, numa bela produção de época! (abaixo)

Voltando ao audiovisual: o livro de Carolina ganhou mais repercussão com o lançamento da novela de Manoel Carlos, A Sucessora, que fez grande sucesso no horário das 18 horas entre outubro de 1978 e março de 1979, fechando com 125 capítulos. A novela era uma mistura de romance com momentos de suspense, muito bem conduzida pelo autor e direção de Herval Rossano e companhia.

Juliana (Nathalia Timberg), a governanta maléfica da mansão Steen, fã número 1 da falecida Alice Steen

Susana Vieira, bem diferente da figura midiática de hoje, nessa época era mais contida e séria como atriz. Sua Marina Steen é bem construída e difere um pouco da “Segunda Mrs. de Winter” do filme de Hitchcock em algumas coisas: Marina, primeiramente, tem um nome! Em Rebecca, o nome da protagonista nunca é mencionado — recurso utilizado para sobrepor a influência de Rebecca de Winter e ofuscar a presença da nova mulher. A Marina de Susana é mais decidida, tem mais personalidade e desafia os outros — é até feminista em pleno anos 20! Joan Fontaine no filme é mais frágil, assustada, como se fosse quebrar a qualquer momento. Dizem até que Hitchcock e Laurence Olivier (e até o resto do elenco) a maltratavam ou a isolavam de propósito para que sua interpretação ficasse mais convincente! (ou por panelinha mesmo)

Marina Steen (Susana Vieira) e a Segunda Mrs. de Winter (Joan Fontaine)

Tanto Laurence Olivier no filme como Rubens de Falco no folhetim imprimiram classe e densidade aos seus protagonistas: tanto Max de Winter como Roberto Stein são homens ricos, charmosos e atormentados pela memória das ex-esposas falecidas que ainda reinam na vida de cada um. A vilã governanta que atormenta a vida da protagonista foi no filme vivida pela atriz Judith Anderson, arrepiante como a sombria Sra. Danvers; na novela, a obsessiva governanta Juliana ficou para Nathalia Timberg, mestre em fazer megeras na telinha. Tamanha foi sua entrega nesse papel que em determinada cena a atriz tinha que apertar com força um buquê de rosas. A atriz fez com tanta força que começou a sangrar pelas mãos de verdade!

Os mistérios da novela, entretanto, não são os mesmos do filme. Não darei spoilers, então assistam!

Numa de suas intrigas para provocar a discórdia, Mrs. Danvers incita a 2ª Senhora de Winter a se matar. Não é mencionado explicitamente, mas dá para concluir que a personagem da governanta é apaixonada pela esposa falecida.

Rebecca de Winter, a mulher inesquecível do cinema (acima); Alice Steen, a mulher inesquecível da novela setentista (abaixo)

Joan Fontaine em sua biografia No Bed of Roses se refere à sua personagem de forma divertida: “I de Winter” (Eu de Winter, traduzindo literalmente). Fontaine também diz em seu livro que Vivien Leigh, depois de Rebecca, antipatizou pela vida inteira com ela, já que o papel foi primeiramente oferecido a Leigh para que contracenasse com Olivier, seu marido na época — fato que terminou por não acontecer. O papel alavancou a carreira de Joan, que terminaria ganhando o Oscar de Melhor Atriz em 1942 por Suspeita, também de Hitchcock. Ela foi a única atriz hitchcockiana a vencer o prêmio.

A Sucessora foi reapresentada na faixa Vale a Pena Ver de Novo no início dos anos 80. Curiosamente, foi a única novela a ser reprisada na íntegra no horário! (já que as novelas costumam ser cortadas e editadas para reapresentação). A Globo Marcas lançou em 2014 a novela em compacto extenso num box de DVD. Felizmente, após muitos anos de espera, a novela foi resgatada na íntegra, reapresentada no Canal Viva em 2023 em homenagem aos 90 anos do autor Manoel Carlos. A Sucessora também se encontra disponível no streaming Globoplay.

Curiosidade bônus: Carolina Nabuco também escreveu outro romance que virou adaptação para a televisão: Chama e Cinzas, de 1947, inspirou a novela Bambolê, escrita por Daniel Más em 1987 (que por coincidência, também tinha Susana Vieira no elenco).

GUERRA DOS SEXOS (Silvio de Abreu, 1983) x A COSTELA DE ADÃO (dir. George Cukor, 1949)

Não só drama — a comédia cinematográfica já rendeu ideias a mil para a televisão, principalmente as comédias clássicas malucas e sofisticadas de antigamente, realizadas por diretores como Frank Capra, Howard Hawks, George Cukor, Billy Wilder e Preston Sturges (só para citar alguns).

Spencer Tracy e Katharine Hepburn formaram juntos uma das duplas mais lendárias do cinema clássico americano, marcando presença em nada menos do que 9 filmes! Um deles é A Costela de Adão, focado na disputa de um casal de advogados em crise que toma lugares opostos dentro de um julgamento de Doris (a “nascida ontem” Judy Holliday), ré por tentativa de assassinato do marido. Tracy é a acusação, Hepburn fica com a defesa da moça. Ainda por cima Tracy é um republicano conservador, enquanto Hepburn é uma feminista democrata. A guerra está declarada!

Hepburn em cena com Judy Holliday
A famosa guerra de comida do café da manhã entre Charlô (Fernanda Montenegro) e Otávio/Bimbo (Paulo Autran) na novela de 1983

Guerra dos Sexos foi um triunfo oitentista que emplacou Sílvio de Abreu de vez como um grande nome do horário das 19h, voltado para tramas leves e cômicas. O foco dessa comédia rasgada era a relação de amor e ódio entre os sexos e a luta das mulheres por direitos iguais, de forma bem-humorada e de um escracho típico dos anos 80 (dá-lhe ombreira!). Em 2022, a novela foi finalmente resgatada e disponibilizada no streaming Globoplay (com apenas um capítulo perdido, dos 185 originais).

Por outro lado, é uma trama completamente produto de seu tempo, sendo quase impossível ser refeita hoje em dia pois muita coisa já mudou na questão de igualdade de gênero. A trama vale para ser apreciada como um retrato escrachado e rasgado dos anos 80 mesmo (vide o remake de 2012 que foi um fiasco), sem grandes desconstruções e sim análises de acordo com o contexto da época (minha opinião).

A vilã Carolina (Lucélia Santos) se infiltra no grupo das mulheres para sabotá-las em favor dos homens. Em cena de briga com sua rival Vânia (Maria Zilda). As duas atrizes inverteram os papéis de mocinha e vilã em Vereda Tropical tempos depois.

Semelhante ao exemplo do cinema, a novela era movida pela disputa entre os primos Charlô/Cumbuca (Fernanda Montenegro) e Otávio/Bimbo (Paulo Autran). Os dois se desafiam através de uma aposta maluca que valerá ao vencedor o poder total sobre a cadeia de lojas Charlô’s: as mulheres lideradas por Charlô devem aumentar os lucros da loja num período de cem dias, caso contrário ela terá que abrir mão de toda a sua parte no negócio. A partir daí começa toda a briga entre os homens e mulheres, com cada grupo buscando provar sua superioridade perante o outro.

Tarcísio e Glória flertam, brigam, mas não ficam juntos na novela. Felipe termina com Carolina (redimida de suas armações) e Roberta Leone termina com o simples Nando (Mário Gomes), motorista que vira modelo de cuecas. Imagens da reprise no canal Sic de Portugal.

Não esquecer também de Cambalacho (1986): o casal Rogério e Amanda (Cláudio Marzo e Susana Vieira) era claramente inspirado na dupla Tracy Hepburn. Mais ainda do que em Guerra dos Sexos, pois no decorrer da novela os dois advogam em lados opostos: Rogério defende a vilã Andreia (Natália do Valle) e Amanda defende a causa da protagonista Naná (Fernanda Montenegro).

Rogério e Amanda, o casal de advogados de Cambalacho. O nome da personagem era clara homenagem a Katharine Hepburn em A Costela de Adão, que também se chamava Amanda.
A Próxima Vítima (1995) se inspirou completamente em Alfred Hitchcock para sua trama de assassinatos, mistério e suspense — até a famosa trilha de Bernard Herrmann do filme Psicose (1960) foi utilizada durante a história, quando o Opala Preto do assassino aparecia. Na foto as irmãs Ferreto (Aracy, Yoná Magalhães e Rosamaria Murtinho — faltando Tereza Rachel), a família italiana central da novela. Numa espécie de versão feminina de O Poderoso Chefão, Filomena Ferreto (Aracy Balabanian) era a matriarca fria, dura e calculista com ares de mafiosa que era capaz de tudo para preservar o nome e a honra da família.
O casal cômico de Rainha da Sucata: Adriana e Caio (Cláudia Raia e Antonio Fagundes)

Sílvio de Abreu é também um autor amante do cinema e suas tramas estão permeadas de referências. Rainha da Sucata talvez seja uma das mais cinéfilas do autor: o casal atrapalhado Caio (Antonio Fagundes) e Adriana (Cláudia Raia) foi uma releitura de Levada da Breca (Howard Hawks, 1938) com Cary Grant e Katharine Hepburn.

Bringing Up Baby, de Howard Hawks, inspirou e ainda inspira boa parte das comédias malucas do cinema e da TV. O filme foi um fracasso de bilheteria em 1938 mas hoje é um clássico inquestionável
Maria do Carmo (Regina Duarte), se vingando do desprezo de Edu (Tony Ramos), faz um striptease semelhante ao de Rita Hayworth no film-noir Gilda (Charles Vidor, 1940). Esse tipo de cena já foi refeita diversas vezes na TV. A relação de amor e ódio de uma moça humilde que fica rica e resolve se casar com seu grande amor como um “negócio” remete um pouco ao romance Senhora, de José de Alencar.

E por fim, À Meia-Luz (Gaslight — dir. George Cukor, 1944) inspirou a trama de Mariana (Renata Sorrah), herdeira frágil que era manipulada pelo marido Renato (Daniel Filho), um vilão interesseiro e sórdido. O termo gaslighting deriva dessa história, sobre um marido perverso que manipula a esposa para enlouquecê-la e tomar sua fortuna — um dos truques sendo manipular as luzes de gás da casa para confundir a heroína. Mas gaslight pode ser qualquer forma de manipulação proposital com o fim de fazer a outra parte de louca ou errada da história.

Ingrid Bergman venceu o Oscar de Melhor Atriz em 1944 pelo seu desempenho no filme

VALE TUDO (Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, 1988) x ALMA EM SUPLÍCIO (Michael Curtiz, 1946)

Gilberto Braga também é um cinéfilo inveterado, e suas novelas estão cheias de referências de cinema por toda a parte. Na casa dos Roitman tinha Eugênio (Sérgio Mamberti), o célebre mordomo que em quase toda aparição sua tinha uma referência cinematográfica para fazer!

Nessa novela (também disponível em DVD e até online), que eu considero uma das maiores novelas de todos os tempos, havia um questionamento sobre o Brasil, em especial a corrupção e a inversão de valores no país recém-saído da ditadura — esse país sempre com uma democracia tão fragilizada, vide nosso contexto atual. By the way, os temas dessa produção continuam mais atuais do que nunca.

Joan Crawford e Ann Blyth em Mildred Pierce

A trama central da novela é a rivalidade entre mãe e filha, tirada do drama Alma em Suplício com Joan Crawford como Mildred Pierce, a mãe humilde que faz todos os sacrifícios do mundo pela filha Veda (Ann Blyth), uma garota mimada que sente vergonha e desprezo pela mãe.

Glória Pires e Regina Duarte em Vale Tudo

Mãe e filha na novela representam duas visões de mundo opostas: Raquel (Regina Duarte) acredita na honestidade, no trabalho duro e no jogo limpo. Sua filha, a ambiciosa Maria de Fátima (Glória Pires), quer vencer na vida a qualquer preço, ser rica nem que para isso tenha que pisar nos outros. Movida por sua ambição, ela vende a casa onde mora com a mãe em Foz do Iguaçu e parte para o Rio de Janeiro com a grana da casa, deixando a mãe sozinha e sem teto. Raquel vai para o Rio atrás de Fátima, que a humilha sempre que pode pois sente vergonha dela, e está decidida a ‘’vencer’’ com a ajuda de seu amante, o michê César (Carlos Alberto Riccelli). Raquel decide então vender sanduíche na praia para sobreviver, e mal sabe ela que isso acabaria virando um grande negócio, e assim ela consegue montar uma rede de restaurantes, a Paladar, e se torna uma empresária de sucesso. Já Fátima vira uma aliada da megera Odete Roitman (Beatriz Segall) e com a benção dela, passa por cima de muita gente e consegue casar com o filho de Odete, Afonso (Cássio Gabus Mendes). A única coisa que Fátima almeja na vida é um marido rico para arrancar o máximo de dinheiro possível, e assim ser feliz ao lado do amante César.

Fátima se atira das escadas do Municipal para perder o filho indesejado — isso lembra alguma coisa?
Provavelmente fez escola com Lana Turner em Ziegfeld Girl (1941)

Raquel e seu grande amor, Ivan (Antônio Fagundes), representavam as pessoas honestas e íntegras, enquanto Fátima e César faziam diversas armações para se dar bem. Raquel e Fátima brigam a novela inteira. Apesar de gostarem uma da outra no fundo, os valores de cada uma impedem que elas consigam se entender.

Uma coisa engraçada que acontece na reta final da novela, e que se aproxima de Alma em Suplício um pouco, é depois que Odete Roitman é assassinada. Maria de Fátima, por intriga de seus inimigos, se torna a principal suspeita do crime. Nessa fase ela já se deu mal em todos os níveis possíveis, e consegue se aproximar aos poucos da mãe. Chega o momento em que Fátima para na cadeia pelo crime que ela não cometeu. Raquel decide salvar a filha da prisão e confessa ter matado Odete, para ir presa no lugar da filha. No fim as duas se livram da cadeia. Fátima até tenta ser uma mulher honesta e trabalhadora, mas depois desiste e se casa com um príncipe italiano. Raquel se conforma com as escolhas de Fátima e vive sua vida feliz ao lado de Ivan, recém-saído da prisão após cumprir pena por participação em um esquema ilegal (outra parte da novela que debatia a honestidade no Brasil redemocratizado).

Na verdade há todo um contexto na novela para o sacrifício de ambas irem para a cadeia que não vale a pena explicar aqui, mas onde eu quero chegar é que nesse caso há um crime e a mãe se sacrificando pela filha. Em Mildred Pierce já começa com um crime, e é a filha quem realmente matou o marido da mãe — a mãe só casou com ele pela filha e por status, e a filha mantinha um caso com ele! Depois de aprontar tanto, Mildred decide não ajudar mais a filha, e no final a abandona à sua própria sorte, atrás das grades.

Mildred Pierce virou um clássico do cinema noir ao misturar a história dramática original de James M. Cain com uma trama de assassinato e uma atmosfera sombria
Em 2011 foi realizada uma ótima minissérie de Mildred Pierce pela HBO com Kate Winslet no papel. A série, diferente do filme dos anos 40, foi mais fiel ao romance de James Cain. O autor também escreveu Pacto de Sangue e O Destino Bate à sua Porta.
Na minissérie Boca do Lixo (Sílvio de Abreu, 1990), o cinema noir americano inspirou e muito o enredo, em especial Pacto de Sangue de Billy Wilder — Silvia Pfeifer é uma esposa jovem e insatisfeita com o marido frio e gay no armário; ela conhece e vive um tórrido affair com um empregado de construção; os dois se unem e resolvem matar o marido milionário dela para ficarem com o dinheiro, mas nem tudo sai como o esperado e plot twists são inevitáveis. Altamente recomendada e pouco lembrada…

Ainda podemos lembrar meio vagamente de Tudo O Que O Céu Permite (All That Heaven Allows, Douglas Sirk, 1956) quando Odete Roitman se apaixona pelo gigolô César, muito mais jovem e pobre, de tal forma que rompe com todos da família e larga tudo para viver com o amante — mas no fim se estrepa. Bem longe do amor recíproco de Jane Wyman e Rock Hudson no filme, Odete descobre que César só queria extorqui-la para fugir com Maria de Fátima. Ela termina sozinha, desmascarada pelos filhos e cia, e ainda é assassinada.

É muito recorrente nas novelas o difícil relacionamento, devido à rejeição da sociedade hipócrita com seus preconceitos, entre uma mulher mais velha e de classe mais abastada com um homem pobre e mais jovem, como acontece em Tudo o Que o Céu Permite. Inspirado em Sirk, especialmente nesse filme, Todd Haynes dirigiu o excelente Longe do Paraíso (Far From Heaven, 2002)

Curiosidade: Afinal quem matou Odete Roitman? Leila (Cássia Kiss), ironicamente uma coadjuvante que não tinha motivo algum para matá-la. Ela viu a sombra do outro lado da porta de vidro e pensou que era Fátima, que na época estava tendo um caso com o marido de Leila, o cafajeste Marco Aurélio (Reginaldo Faria). Assim ela disparou, transtornada, três tiros à queima-roupa sem saber que quem estava atrás da porta era na verdade Odete. Leila e Marco Aurélio conseguem fugir do Brasil.

Indo mais além, não é só em Vale Tudo que encontramos o drama típico da filha que sente vergonha da mãe pobre e humilde, presente não só em Alma em Suplício mas também em filmes como Stella Dallas (King Vidor, 1937). O tema foi explorado em folhetins como Lua Cheia de Amor (Ricardo Linhares, 1991), e também em Dona Xepa (1977) e Dancin’ Days (1978), ambas de Gilberto Braga.

Imitação da Vida, outro novelão do cinema

Já em Anjo Mau (Cassiano Gabus Mendes em 1976 e Maria Adelaide Amaral em 1997), há o drama ainda mais delicado da filha branca de mãe negra que esconde sua origem, exatamente o drama retratado em Imitação da Vida (Imitation of Life, John M. Stahl em 1934, Douglas Sirk em 1959) com uma filha ingrata que rejeita a mãe negra.

Em Laços de Família (Manoel Carlos, 2000), Vera Fischer faz como Lana Turner em Imitação da Vida e abre mão de seu amor pela felicidade da filha
A pobre Stella Dallas (Barbara Stanwyck em estado de graça) assiste, de longe, a felicidade da filha e se emociona

Indo mais longe em Dancin’ Days, por exemplo, as referências correm soltas. Sônia Braga usou em cena um vestido igual ao de Joan Crawford, desenhado pelo estilista Adrian para o filme Letty Lynton (Clarence Brown, 1932) !

Cortesia do blog Ladolcevita

Vamos pensar no difícil relacionamento entre as irmãs Júlia (Sônia) e Yolanda (Joana Fomm) e na disputa das duas pelo amor da filha de Júlia, Marisa (Glória Pires). Esse é o mote principal da história de Dancin’ Days, e nele há uma certa semelhança com um filme de Herbert Ross chamado Momento de Decisão (The Turning Point, 1977). No filme não são irmãs, porém amigas, ambas bailarinas, separadas pelo tempo e por constantes desentendimentos. Shirley construiu uma família, enquanto Anne seguiu carreira. O que as une agora é a filha de Shirley, que quer ser bailarina e entra para a companhia de Anne, que logo se torna sua mentora. A amizade das duas é posta à prova, e a rivalidade chega ao ponto das duas se estapearem no clímax do filme, igual fazem Júlia e Yolanda no final de Dancin’ Days. Depois de tantos desentendimentos, as duas mulheres do filme e as duas irmãs da novela fazem as pazes, afinal o que elas mais querem é a felicidade da garota que elas tanto amam.

Dancin’ Days também está disponível em DVD, além de estar completa por aí na internet.

Júlia e Yolanda se reconciliam ao som de Amanhã de Guilherme Arantes
As duas amigas assistem o sucesso da jovem bailarina em The Turning Point

E ainda falando de Gilberto Braga, um de meus autores preferidos, ainda falta uma novela importante dele para comentar.

CELEBRIDADE (Gilberto Braga, 2003) x A MALVADA (Joseph L. Mankiewicz, 1950)

Apesar de ter flopado na reprise, Celebridade foi um dos maiores sucessos dos anos 2000 no Brasil e talvez o último grande papel de Malu Mader desde então

Apertem os cintos, essas são obras turbulentas! Foi inspirado em A Malvada que Gilberto criou a novela que tinha como protagonista a produtora musical de sucesso Maria Clara (Malu Mader), e como vilã a ardilosa Laura (Cláudia Abreu) que primeiro conquista a confiança de Maria Clara para então traí-la e usurpar seus bens e sua fama. Nada longe da sórdida Eve Harrington que conquista a simpatia da estrela Margo Channing (Bette Davis em seu papel mais icônico) para então roubar seu lugar de destaque nos palcos e conquistar a fama com que sempre sonhou (e se possível, até o seu homem).

Ao contrário das atrizes burrinhas da TV e dos ingênuos que acham que é Bette Davis ‘’a malvada’’ do título, é Anne Baxter quem lacra totalmente na pele da invejosa Eve
Pôster de All about Eve
A novela continha cenas e diálogos muito semelhantes aos do filme de 1950, e pensando nos dias atuais, foi uma das primeiras a criticar as subcelebridades e os que querem fama a qualquer preço

No filme, Margo é boa demais para se deixar abater pelas armações de Eve, e quer acima de tudo viver feliz com seu amado Bill (Gary Merrill), o qual Eve fracassa em querer tomar para si. Resta a Eve apenas sua fama artificial e “troféus para colocar no lugar do coração’’. Margo é uma verdadeira mulher badass talentosa e espirituosa, enquanto Eve é fria, falsa e só conquistou seus quinze minutos de fama passando por cima dos outros. Como já disse Miguel Falabella uma vez, se não me engano, algo do tipo “o mundo não é mais das Margos, e sim das Eves’’. Infelizmente ele tem razão. Faltam Margos no mundo atual.

Na novela, Maria Clara tenta se reerguer, reconquistar o espaço que lhe foi tomado por Laura e desmascará-la. O dia em que Maria Clara meteu 27 tapas na cara de Laura entrou para a história. A cena remeteu a um outro folhetim de Gilberto: Água Viva (1980), quando Lígia (Betty Faria) deu uma surra em Selma (Tamara Taxman) no banheiro do Canecão.

Mais do que ambição, Laura queria se vingar de Maria Clara por causa da autoria de uma música hit, Musa do Verão, composta pelo seu padrasto para a mãe de Laura, mas que construiu a herança de Maria Clara, que ficou com os créditos da inspiração para si (sem saber da história real, pois foi seu ex-noivo morto com ajuda de outros que roubou a música). Laura cresceu na miséria, com o padrasto preso e a mãe cometendo suicídio, e já adulta se vinga ao ascender e puxar o tapete de Maria Clara, que de baixo luta para voltar para o topo pelos seus próprios méritos. Em resumo, as duas foram usadas num grande esquema, mas Maria Clara cai do pedestal e reage de forma honesta enquanto Laura almeja o topo usando de trapaças e golpes.

A FAVORITA (João Emanuel Carneiro, 2008) x O QUE TERÁ ACONTECIDO À BABY JANE? (Robert Aldrich, 1964)

A rivalidade entre duas mulheres que foram criadas juntas, se tornaram famosas e viram uma tragédia mudar a vida delas para sempre. Estou falando da novela ou do filme? Os dois!

Com um ritmo frenético e reviravoltas alucinantes, A Favorita foi uma novela que inovou em muitas coisas o folhetim. Por quase dois meses ficamos na dúvida sobre quem era a mocinha e a vilã: Flora (Patricia Pillar) ou Donatela (Cláudia Raia), antigas cantoras da dupla sertaneja Faísca e Espoleta. No decorrer da trama é revelado que Flora é a verdadeira assassina de Marcelo, o antigo marido de Donatela e que era amante de Flora. Por inveja da ex-parceira de dupla, que largou a dupla para viver com seu amor Marcelo, Flora cometeu o crime e acabou condenada. Saindo da prisão, ela consegue virar o jogo a seu favor e colocar a culpa do crime em Donatela, que vai presa mas consegue fugir da prisão ao forjar a própria morte. Caberá agora a ela provar que Flora é de fato a vilã da história.

A Favorita também foi lançada há alguns anos em DVD!

As garotas criadas desde cedo para serem famosas, as mazelas dessa fama e principalmente a eterna rixa entre duas mulheres lembra em muito o clássico estrelado por Bette Davis e Joan Crawford. Mesmo não sendo irmãs como no filme, mas de criação, Flora e Donatela têm cada uma sua própria versão da história, o que molda o começo da trama quando não sabemos quem está dizendo de fato a verdade. No filme a ordem é um pouco inversa: a princípio Jane soa como a vilã mais óbvia com todas as suas maldades, cansada de cuidar da irmã que acreditar ter tornado paraplégica num fatídico acidente, além de sonhar com um retorno da carreira longínqua (como Flora querendo voltar com a dupla). Mas ao longo da projeção fica claro que nenhuma das duas é santa, e na revelação final de Blanche isso é nítido. Assim como Flora mostra que não é quem parecia ser, Blanche também se mostra igualmente dissimulada. Donatela, mesmo não perfeita, acaba mais como uma heroína sofrida. Jane, mesmo grotesca e por vezes diabólica, foi também uma vítima das circunstâncias e se tornou uma paródia de si mesma. No fim, tanto na novela como no filme, elas poderia ter sido amigas desde o começo. O destino é cruel.

E é isso, minha gente. Claro que tudo isso é só uma parcela das várias possibilidades de diálogo entre cinema e TV, então caso você que leu e sentiu falta de algum caso específico, comente!

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gosto muito das novelas que mencionei, principalmente as mais antigas que tive o grande prazer de assistir, na íntegra ou por partes. As novelas atuais precisam se inspirar mais no que já foram antigamente, no que diz respeito à qualidade do texto e dos grandes atores de antigamente, ao invés dos ‘’modelos’’ de hoje em dia e produções sem graça. E principalmente: o gênero e a TV precisam saber se reinventar sem perderem a essência.

Deixo claro que cinema é e sempre será minha paixão maior, e apesar de gostar muito de televisão (estou revivendo nos últimos tempos o meu amor pela TV, a qual desde que eu era pequeno eu vivia pesquisando na internet e em almanaques), concordo com quem diz que a TV tem muito a se inspirar na profundidade dos grandes filmes — ao invés de apelar às soluções fáceis e ao sentimentalismo barato, apostar mais na multiplicidade de sentido e de possibilidades de interpretação que caracterizam as grandes obras-primas cinematográficas… Enfim, humanizar mais, aprofundar na complexidade humana e deixar de forçar demais no maniqueísmo bem x mal, parar de valorizar meritocracia e veladamente fomentar o status quo. Nesse aspecto, a teledramaturgia tem muito no que se inspirar no cinema.

Foi-se o tempo nostálgico em que a família se reunia no sofá para ver uma novela como numa espécie de comoção nacional. Ponto positivo: hoje temos muito mais variedade de lazer e a TV não domina as nossas vidas como dominava no século passado. Negativo: a qualidade dramatúrgica da TV aberta no Brasil caiu assombrosamente — hoje se vê mais modelos do que atores e quando uma novela termina, no dia seguinte ninguém mais se lembra. Referências mais variadas e eruditas hoje mal têm espaço na televisão, que fica a cada dia mais vazia e focada demais na ideia de “cultura de massa”. Lógico que é para as massas no fim, mas nem por isso precisa ser de baixa qualidade e de pouca reflexão. Entretenimento não precisa ser pão e circo e o público não deve se deixar ser “gado”.

No que diz respeito a críticas sociais, regrediu-se e muito. Se antes os textos eram mais ferinos, até mesmo em plena ditadura (!), hoje as novelas parece que só retratam um mundo folhetinesco à parte da nossa realidade, como meros escapismos caricatos travestidos de moderninhos. Cadê a crítica social de Vale Tudo, por exemplo? O tempo passou mas a novela de 1988 continua super atual… Até mais do que muita coisa que passa hoje na televisão. Faltam bons roteiristas, já que nunca teremos de novo na TV um Dias Gomes, um Gianfrancesco Guarnieri, ou um Bráulio Pedroso (só citando alguns). Para se dizer “adaptada aos novos tempos”, um merchan social ali, núcleo de comunidade lá, funk e outras coisas da cultura de massa como trilha, atores novos e descolados, referências de internet e cia, elenco diverso para mostrar representatividade, mas em geral as novelas são todas iguais e com personagens e enredos sem graça que são esquecidos logo depois do último capítulo. E depois?

O produto vem se adaptando às novas realidades, hoje falando mais abertamente de sexualidade em suas diversas formas, criticando o machismo, e assim por diante… Histórias datadas estão perdendo a vez, com vilões forçados e mocinhos românticos; as mulheres estão já com perfis mais modernos e não mais focadas em rivalidade fomentada pelo patriarcado ou a se limitarem a apenas correr atrás de um homem, disputá-lo ou coisas do tipo. Mas mesmo assim, ainda há muito caminho para se andar. Um mero beijo gay ainda é raro e sempre motivo de festa quando acontece… Qualquer tipo de desconstrução de heteronormatividade, temas espinhosos como aborto, eutanásia, suicídio, religião e etc. ainda são motivos de tabu na nossa sociedade, infelizmente. (e quando digo religião, de forma diversificada e plural, não à la Record e suas epopeias bíblicas ou cristianismo como a verdade universal)

Muitos dos autores da velha guarda estão aposentados ou deixando a TV, infelizmente por um lado mas por outro alguns desses velhos autores foram malsucedidos ao escreverem textos ruins ignorando os novos tempos, com tramas sem inspiração, forçadas demais na marginalidade com o fim de chocar, histórias sem pé nem cabeça e saídas do mofo. Tem também os veteranos que abusam e usam do populacho para fazer sucesso com textos pobres, coisa que não me atrai. Entre os novos autores existem os promissores que demonstram talento, como Lícia Manzo (A Vida da Gente, Sete Vidas)…

Um outro problema atual são os atores sem graça estilo modelete ou influencers, roteiros fracos, um politicamente correto forçado que deixa tudo careta e engessado, muita tecnologia e imagem HD e pouca dramaturgia, pouco espaço e bons personagens para os atores da velha guarda, enfim, isso tudo daria um outro texto rs. Afinal vamos lembrar que a tv antiga tinha nomes vindos do cinema, do teatro, numa época de grande efervescência cultural, enquanto hoje a TV está à deriva, em meio aos streamings e cia, tentando se reinventar e não perder público e espaço.

Um grande problema também que eu vejo é o fato das novelas em si estarem desgatadas x o público boa parte conservador que não aceita muita novidade e prefere engolir mesmo o folhetim típico, desprezando novelas muito “diferentonas”. A sociedade líquida na qual vivemos consome de forma rápida e esquece mais rápido ainda, então a memória do público hoje é curta e as produções pouco marcam o nosso imaginário (também pelo fato de serem esquecíveis). No máximo creio que Avenida Brasil de 2012 foi a última novela a “parar” o Brasil e olhe lá — e lá se vão quase 10 anos. Assim como foi uma das últimas novelas que melhor retratou o Brasil de seu tempo, com a ascendente Classe C no seu auge. ENFIN…

Num nível pessoal, não creio que se fará novelas como as clássicas de antigamente, e não se trata só de saudosismo. As séries têm conquistado muito mais a atenção do público nos últimos tempos, até mais do que os próprios filmes, enquanto as novelas estão cada vez mais desgastadas e sem inspiração, numa época em que as emissoras estão procurando se reinventar em todos os sentidos. O futuro disso tudo? Ainda uma incógnita, mas seguimos ligados.

Bye Bye, Brasil!

(Repost editado e atualizado de texto de 2017 pro meu blogspot A Noviça Cinéfila)

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Pedro Dantas
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Written by Pedro Dantas

Writer, English/Russian teacher, Art enthusiast, Film lover. Escritor, professor, entusiasta. Brasil - Portugal

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