Abóbora com leite (conto)

Pedro Dantas
17 min readAug 28, 2021

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Era um dia normal.

Mas mal sabia ela que normal é um ilusão. O que é normal para a aranha, é o caos para a mosca… Já disse uma vez a Morticia Addams. Minhas referências são ótimas, pensou. Só elas me salvam de ser outra pessoa qualquer, concluiu. Ah…

Era uma pessoa qualquer que acontecia de ter boas referências. Uma vez conversou sobre essas coisas com um paquera promissor. Ela gostava de Família Addams. Ele de Os Monstros. Silêncio, visualizado azul. Fim da conversa. Não entendia de tecnologias. Como todas as pessoas mais velhas, esquecia dos pontos, das vírgulas, e não lhe faltavam reticências… Em todas as sentenças e pensamentos… Mas…

Mas pago tão caro essa televisão para assistir ao mesmo filme da Sandra Bullock três vezes ao dia, pensou e riu. Aquilo que disse era engraçado. Mas não tinha ninguém para dizer isso. Na verdade mil pessoas deveriam ter pensado o mesmo, e nem todos ririam.

Falando em moscas, dizia para si mesma, lembrei daquele filme. A Mosca. Fly pode ser o verbo voar, mas também mosca. Que língua louca que é o Inglês. Acordei com o cabelo mais frisado do que da Geena Davis naquele filme. Meu deus do Céu, por onde anda Geena Davis? A Mosca… Quem diria que um bicho que vive 48 horas renderia filme, conto, poesia e sabe se lá mais o quê. Mais importante pra literatura só mesmo a barata. Acho que era Garbo que tinha moscas como amigas. Eu sou solitária, mas não tenho um rosto como obra de arte. Eu não tenho arte alguma para viver ou abdicar. Tenho olheiras mais fundas do que a cratera que deu hoje na Salim Farrah Maluf. — sobre tudo isso enfim divagou.

Odiava moscas que nem sabia. Odiava muriçocas desde sua infância na Bahia, já muito distante de seu prédio na Bela Vista. Ou Cerqueira César, vai entender a divisão destes bairros todos iguais, cheios de árvores e silêncio de classe alta. “A floresta petrificada”… Vira o filme de Bette Davis e pensou nessa descrição para seu bairro elitista e estoico: a floresta petrificada. Ou talvez a floresta proibida… Pois: vi, vim, venci. Hoje eu moro aqui.

Como se isso fosse uma vitória… Ser uma possível personagem de literatura intimista burguesa. Cadê a Lygia Fagundes Telles pra escrever a minha história?

A Rua Augusta era logo ali, mas não apetecia a ela. Cheia de bares decadentes, neons cansados, bebida ruim, cinemas de arte sem arte. Jovens depravados, vulgares, que se sentiam como se estivessem acima do bem e do mal. Vulgares… Como eu sou hipócrita. Mas somos todos. Rá. Se acha também ela melhor do que os outros? A hipocrisia é inerente ao homem? Não sabia a resposta de nada, se sentia burra, tentou filosofia mas largou e ficou em Administração de empresas, um curso tão amplo e tão vago. Numa universidade lava-cachorro, ok, mas estava melhor do que muitos da USP.

Hoje ela era uma respeitável auxiliar administrativa do Hospital das Clínicas. À procura de uma dignidade… Isso era um título de algum conto, mas nem lembro.

O romance italiano não se lerá sozinho. Fico enjoada ao ler no metrô. Mas para os mortais que passam mais tempo no transporte do que na vida, é o tempo que lhes resta.

Se masturbaria ao som de Roberto Carlos, igual à velha do Maracanã do conto de Clarice. Hum, não tenho ninguém para falar sobre nada disso. Nem Netflix eu assino, nem Instagram eu tenho. Logo, era como se nem existisse.

Mesmo sem o romance terminado… Hoje estrearia a sua mais nova e bela posse: um guarda-chuva italiano. Les parapluies de Cherbourg? [Os Guarda-Chuvas do Amor] Ficou furiosa quando assistiu ao musical e muitos adolescentes riam, debochando do filme por ser todo cantado. Deu uma dura em todos eles depois da sessão, e deu as costas para os adolescentes desconcertados, os quais nem tinham a alma ainda formada. Uma senhora digna e respeitada, mesmo que só por alguns minutos. Na verdade, ninguém nem se importava. Em algum lugar de Paris, Catherine Deneuve estaria fumando e cagando para o mundo. Uma outra senhora digna e respeitada — e também workaholic, diga-se de passagem. Pois até mesmo os artistas são operários neste insensato mundo.

Ela era uma pessoa como qualquer outra aqui, a paulistana da Haddock Lobo. Que aconteceu de querer comer hoje, excepcionalmente, abóbora com leite. Nada da padaria gourmet que sai na Veja toda semana e tem fila que entra até no banheiro. Remontava então as comidas extravagantes de sua mãe, lá longe na Bahia onde passava seus dias remoendo rancores, dissabores e solidões enquanto a novela das nove sempre a aborrece. Tão diferentes e tão iguais: as duas só esperavam a morte.

Lembrava novamente de Deneuve. Lera sua autobiografia: “À l’ombre de moi-même”. À sombra de mim mesma. Riu sozinha na área de serviço lembrando do curso fracassado de francês, quando tentou ser secretária de uma multinacional. Ela, a que amava rir sozinha no banho por coisas aleatórias. E então ficava séria e o jorro da água urrava mais alto, escoando, escoando ralo abaixo junto da sua essência mais íntima e perdida… “Mas ela hoje é apenas uma sombra de si mesma”… já disseram isso a ela. Não em sua presença, obviamente. Ninguém diz nada face a face para não ferir — para ferir através das paredes. E nem ao menos lembrava quem havia dito tal disparate. Começava a não lembrar das coisas… Broca e desaprumada, já diriam na casa de sua mãe.

Talvez tivesse sido sua própria mãe. Ou talvez ela mesma de frente ao espelho. Talvez o filho que nem falava mais com ela. Esquecera até o nome dele. Pois nunca nem nasceu.

Mas sempre quis ter um filho de nome Tiago.

Mas eu nem estou grávida, surtou em silêncio. Apesar que com a barriga enorme. Mesmo que o útero já tivesse sido tirado após um câncer. “Tá grávida?”, ouvia às vezes dos Bozos de churrascos de domingo. E nem chopp ela bebia. Sendo que a menopausa já tinha ido havia muito. Enfim. Uma vez estava fazendo compras com uma moça tão simpática, aquariana avoada e maluca, falava como a nega do leite, mas gente boa. Tinha esse costume bobo de perguntar o signo de todos: estranhos, colegas, contatos de aplicativo. Ela, por sua vez, era Sagitário com ascendente Virgem. A aquariana bavarde não dava trégua: “Vixe, sua Lua em Escorpião é queda, menina, daquelas que joga gasolina e risca o fósforo”. No fim da conversa a moça já indo, olhou pra barriga dela, disse: “Felicidade aos dois”. Dois quem? Eu e meu bebê de banha, concluiu. Estupefata. Ficou desnorteada. De repente estava grávida mesmo. Do Espírito Santo no qual nunca acreditou.

Claramente já se passou por grávida e se sentou no banco preferencial do transporte. Absolutamente ninguém questionou.

E os videocassetes de Jane Fonda a mofar no seu guarda-roupa. Não havia baratas, apenas mofo e coisas inúteis. Mais dinheiro jogado fora do que os livros de Sabrina. Nem o sebo os quis. Saiu de lá desgostosa. Uma senhora honrada com sapatos Scarpin e bolsa Victor Hugo. Blusa cortesia da Renner (segredo).

Aceitara ser a cosmopolita da família, ao abdicar da vida medíocre do agreste, da vida medíocre dos subúrbios de Carapicuíba, nos tempos em que sua família ainda estava em São Paulo. Todos se bandearam mundo afora, quer dizer, Brasil afora pois este é quase um mundo dentro do mundo. Já recebeu cesta de Natal com caviar e tudo, já teve um amor estadunidense, já leu todos os livros de Milan Kundera. É, eu tenho uma vida — deduziu. Ainda um tanto desconcertada de existir.

E agora? Bem, hoje se contentava em experimentar o patê de caviar gratuito da degustação no empório do Center 3. E a fazer compras semanais no Mercado Dia.

Aceitara ser uma mulher solitária, ao contrário de sua irmã Sandra que era uma mulher casada com um homem mais companheiro do que marido de fato. Traía ela, obviamente, e isso era algo que nunca aceitaria. “Sou igual a Lampião, não aceito traição”. A irmã não era feliz, mas preferia alguém do que ninguém.

E ela por acaso era melhor por não ter ninguém? E ela seria melhor se tivesse alguém? Não. Não. Ângela Pratini aceitara seu destino de mulher sozinha na grande metrópole. “Felicidade é coisa de gente burra”, já disse a Maysa. A cantora ou a sua manicure? Não lembrava.

Mas eu não sei se sou forte o bastante, segura de mim o bastante, para estar sozinha no mundo, sozinha contra uma cidade… Se não fosse uma terceira perna, fraquejava em desejar um homem a quem se encostar, pois era tão mais fácil não ser uma ilha humana…

- CPF na nota? — diz a caixa do supermercado com voz anasalada. A caixa parecia a Michelle Pfeiffer depois de um atropelamento, com um olhar de tédio que no fundo implorava para ser descoberta e famosa.

Não, nunca quis CPF nenhum. Ela só queria o seu leite, a abóbora já estava em casa, pronta e à espera. Comprou também pêssego em calda e damascos para sua sexta à noite solitária vendo reprises inúteis da madrugada. Água sanitária e uma flanela também. Sabão de coco para lavar roupa. E uma coca zero.

Um bairro muito bom de se viver este, realmente. “Mas você vai no Dia, aquele mercado de pobre?!” perguntava sempre sua vizinha Sônia, descanse em paz. Pois ia mesmo no mercado Dia, mesmo sendo “de pobre”. Só lá encontrava azeite na promoção. E de qualquer forma ninguém era seu chefe para contestar nada que fizesse. Mas a Sônia ela nunca levara a sério.

Sua vizinha Sônia fazia muita falta. Era uma stuck up do caralho, mas gente boa. Tinha até saudade das brigas intermináveis dela com o marido biruta. Não mais. Não mais… Um morreu de AVC, a outra de câncer no pâncreas. Às vezes gostaria de conversar sobre estas coisas dolorosas com quem quer que fosse, mas era orgulhosa demais para conversar com aqueles únicos que a poderiam ouvir: seus vizinhos de banco de ônibus.

O Pedaço da Pizza convidava com aquele aroma maravilhoso de pizza a lenha, sua favorita era tomate seco com rúcula. Ou a pizza de cogumelos. Precisava ser fina. Preferia continuar andando com sua Victor Hugo ou Katie Spade para se sentir uma digna mulher balzaquiana que já era, mesmo que ela permanecesse sem ter um único centavo na sua conta bancária. Já deu uma nota de cinquenta reais para o cobrador de ônibus de propósito. Não vou ter troco, dona, debochou a cobradora. Problema seu, insultou-a. Saiu do carro sem pagar, alta e triunfante. Pois era uma dama digna e honrada, respeitada por vassalos invisíveis.

Chegada em casa, era hora de correr. Pois o trabalho prosaico a esperava cansado em si próprio. Tinha alguns minutos para preparar sua abóbora com leite. A abóbora já quente desmanchando. Aqueceu o leite no micro-ondas e colocou na sua caneca favorita da Pizza Hut. Onde costumava ir com seus sobrinhos. Mas eles nem lembravam que ela existia. Enfim, o mundo marcha e tem-se fome. Pegou um pedaço da abóbora, retirou a polpa e misturou ao leite. Já ia se esquecendo do açúcar, meu deus. E nem em Deus tinha certeza de acreditar às vezes, mas andava com um cordão de Nossa Senhora desde moça. Soprou o vapor de leve da caneca e começou a beber.

Seu cãozinho Frodo gostava tanto de abóbora. Mas morrera no verão passado. E o seu chefe mesmo assim descontou de seu salário o dia em que ela teve de se ausentar para levar o corpo do cão para a incineração da Prefeitura. E o leite já ia descendo pela glote… Quase se engasgou e teve um acesso de tosse com a lembrança amarga… A abóbora com leite então se tornou agridoce.

Tinha gosto de primavera com vento seco nas ruas da Bahia. Suspirou. Colocou um pouco de canela para dar mais sabor… Se sentiu cheia. Era hora de correr.

Não sabia por que, mas a casa toda estava com cheio de sutiã usado. Deu de ombros e saiu…

Olhou-se mais uma vez no espelho do seu armoire antes de partir. “Sua Cruella sem coração”. Nem sabia por que pensara isto. Do primeiro andar onde morava até o térreo, olhou-se de novo no espelho do elevador. Às vezes tinha medo e nojo de si própria.

Voou um pássaro — meu deus. Foi correndo. Quebrou seu salto novinho cortesia da Arezzo. Gabriela Calçados? Jamais. Lembrou de uma vez que a irmã roubou seu RG por vingança, logo quando precisava dele, e daí lá foi Ângela Pratini no Poupatempo assinar um atestado de pobreza por não ter trazido dinheiro, e ainda implorar para a atendente agilizar o processo. But that’s another story, já diriam em Irma La Douce — daqueles filmes que só ela via numa madrugada insone de Telecine Classic que nem existe mais. Enfim, contava essa história quando queria parecer gente como a gente e fazer os outros rirem, pois em geral não sabia contar histórias ou parecer interessante.

Voltando:

Entrou finalmente no metrô Consolação. Mas Consolação de quê, meu deus? De viver do lado de um cemitério? Consolação nenhuma a ela que sentia perdida naquele antro de veados fosforescentes, jovens idiotas metidos a drogados, yuppies de merda, grupos de colegas falsos de trabalho indo almoçar, os matusaléns indo ao cinema caro (que ela também frequentava, solitária como Joan Crawford em Autumn Leaves), sem falar então nas peruas decadentes. “Se eu quisesse ver peruas, iria ao zoológico”. E ai de quem dissesse que ela era perua… O que não daria para não ir trabalhar e… Ir ao zoológico. Nem poderia porque o zoo era na São Judas, longe demais. Quer dizer, na Conceição… mesmo nome de N. Senhora da Conceição, santa do seu dia de nascimento: 8 de dezembro. Como a outra foi ao zoológico para aprender a odiar, Ângela queria ir ao zoológico para aprender a amar, para aprender a viver. Talvez até para perdoar um Deus que para ela então nem existia.

Sou Ângela Pratini, uma mulher com dignidade. Mas digna de quê?

Lá estava a atendente Adriana. Com quem bateu boca um dia desses por não saber dar uma informação simples. Já odiava o nome Adriana por ser o nome de sua dentista. “Mas você trabalha na SSO pra quê, afinal? É sua obrigação saber isso”. E a empáfia… De Ângela mesma ou da atendente Adriana? “Vocês jovens sorridentes de iPhone não me enganam, são todos uns falsos sem personalidade. Parecem mais um computador da IBM falando do que uma pessoa”. A mesma IBM onde sua prima bem-sucedida trabalhava em Atlanta. No país onde ela um dia comera caviar, hoje só na degustação. Mas não queria lembrar, na verdade se lembrava de cada vez menos de tudo, só de aleatoriedades. Nem lembrava direito porque batera boca com a atendente Adriana, mas enfim, fez a caveira dela, já havia dado seu nome para a ouvidoria tomar conta.

Nunca fizeram nada em relação à atendente Adriana.

Assim como a maioria das suas críticas construtivas não eram sequer consideradas. Tinha a Lua em Áries, era bocuda. Ela, que era importante só para si mesma. E não se conformava com isso. Assim como qualquer pessoa só é de fato importante para si própria — os outros somos nós mesmos e cada um na sua. Quem sou eu? — bastou se fazer essa pergunta para nascer um enjoo mortal dentro de si. Soluçou que quase gorfou. Eita. Peidou que quase fez ali mesmo nas calças da Gregory. Vixe.

Não sabia se era a lembrança amarga da atendente Adriana ou por ver tanta gente amontoada sacolejando na escada rolante, mas… Passou a se sentir mal. Dessa vez não era a azia típica. Estava empapuçada, como diziam lá na sua casa. Empapuçada de si mesma, mas não apenas. O dia estragado, mas não apenas. Fora a abóbora com leite… Oh… E não podia voltar para casa, já era longe, já era tarde. Odiava banheiros públicos, preferia segurar até chegar em casa. Mas o banheiro do serviço parecia ser na China de tão longe naquele fatídico momento de enjoo. Estava perdida na cidade da própria náusea.

Entrou com pose de fina no vagão. No fundo, suava mais frio do que a própria frigidez. Preferia chamar o vagão de “carruagem” como em Portugal, onde sonhava morar. Ao passar pelo vão, pensou que seria sugada por ele — sua síndrome de Anna Karenina batia à porta. Não conseguiria ler, não tinha lugar vago, todos os preferenciais estavam cheios de idosos como numa excursão rumo ao bingo. Sentiu assim uma vertigem digna de Hitchcock. Mas que alívio seria se houvesse uma baía para onde mergulhar, ou uma torre de onde se jogar… As pessoas encaravam e desviavam o olhar e encaravam. O ar lhe faltava, a pele esbranquiçava. Começou a suar frio. Sua escova já perdera o efeito, o cabelo embaraçava. Perdia o fôlego, seus óculos Gucci já embaçavam. Por um momento, seu orgulho cessou e até esperava alguém vir em seu resgate, um qualquer de mochila nas costas para dizer “moça, você tá passando mal?”, mas absolutamente nada aconteceu. Existem esses momentos ocos de solidariedade no mundo, acreditem. Apenas olhares espantados ou indiferença de fone de ouvido, e alguns que só despertarão do sono da apatia quando sangue derramar e passar no jornal de noite. Crê em Deus Pai, diriam na sua casa. Mas foi tudo muito rápido para se rezar um Crê em Deus Pai… Tentava levantar a cabeça, respirar fundo, se apoiar no seu guarda-chuva italiano novinho já que suas pernas tremiam e seus pés que já mal suportavam o salto Arezzo, há tempos que não mais Scarpin, mas num jato de nojo, ódio, desgosto, rancor, ranço da raça humana e de si própria, e claro, da abóbora com leite, gorfou — nem vomitou, gorfou mesmo — como quem tosse, como quem espirra — ali mesmo no vagão rumo ao metrô Clínicas. Gorfou igual aos jovens bêbados que tanto desprezava, igual à menina do Exorcista, filme que sempre lhe fizera molhar a cama. Sujou o chão preto todo do corredor com seu vômito cor de bile, até mesmo seus sapatos e um pouco do cabelo. Hirta de vergonha, queria se recompor, mas não sabia nem por onde começar. Queria se compor, mas não sabia nem por onde se começar. E o mundo marcha. E pessoas queriam mesmo entrar e ela bloqueava a passagem. Silêncios de espanto ao verem a cena do seu crime — ela não podia suportar a sua vergonha pega em flagrante. Ela que roubava livros ou criticava a comida do restaurante pra não pagar, mas um flagrante assim? Era demais para ela, e assim saiu correndo com a enorme vergonha de uma criança que entupiu o vaso sanitário da casa de alguém. Depois de ser notória por um dia, ela só queria voltar a ser anônima. À sua vergonha anônima. E ainda deixava rastros de vômito nas suas pegadas Arezzo pela plataforma… Enquanto se sentia o próprio Jogo de Dados desmontado de Geraldo de Barros ali à exposição.

Abrigada enfim das massas, atrás de uma coluna de concreto, pensou em chorar imediatamente. Mas em chorar não se pensa, se faz. Não escorreu nenhuma gota que não fosse do vômito ainda fresco. Ok, mulher vomitada, reaja.

Momento de reflexão. Pensou que era tão sozinha na cidade que não havia absolutamente ninguém para quem ligar ou pedir socorro. Não naquele momento, mas caso enfartasse, ou qualquer piripaque. Uma vez passou tão mal ao subir a Rua Augusta em plena tarde alta que achou ter ficado cega. Sentou na janela de fora de um qualquer McDonald’s, respiração arfante, suor frio. Enquanto todos os transeuntes apenas passavam. É. Dependeria da bondade de estranhos… Se não fosse seu RG na bolsa, seria enterrada numa vala de indigente.

Sentiu ela tamanha amálgama de sensações que… A primeira coisa que pensou foi… Que poderia escrever um conto sobre isto tudo. Ok, eu deveria me permitir sentir mais, porém pensar convém mais agora — sentiu, pensou, intuiu.

Porque nunca havia escrito uma linha sequer; porque para ela, escrever era vomitar, e editar seria mexer no próprio vômito. Ela fugira disto a vida inteira, até este momento. Se sentiu cansada de tão aliviada. Poderia escrever um livro inteiro naquele momento se quisesse. Quer dizer, escrevia bobagens aleatórias em papeis que guardava na bolsa. Escrevia coisas do tipo “Sendo a vida uma arte, nem todos nós somos artistas” por cima de guardanapos, bulas de remédio, embalagens de Trident.

Talvez devesse escrever de fato. Não tinha nada a perder.

Quando o metrô partiu, ao invés de chorar ou de manter a pose com o salto quebrado, até riu igual uma louca. Como Isabelle Adjani em estado de possessão. Como uma criança que entope o vaso de alguém e foge e ainda ri de quem for desentupir. Talvez tivesse enlouquecido. Talvez fosse maior do que a vida e nem soubesse.

E ela teria um motivo novo para rir sozinha durante o banho naquela noite, ao som de Roberto Carlos boca-de-risco.

– Moça, o guarda-chuva!

Oh não, fui fulminada. Mas não. Oh um sinal de humanidade, enfim… No fim do túnel daquele metrô esverdeado e austero de onde viera, permeado de Tomie Ohtake. De alentos granulados sobre tela. A situação era tão grotesca que no fim era normal — afinal o Brasil já era o país do absurdo, um circo onde só faltava ela ser a mulher barbada. Quer dizer, vomitada. Pois não era mais Ângela Pratini, a diva decadente que ouvia Marlene Dietrich à noite. Era apenas uma tiazona solteirona que vomitava no metrô. Era mais uma na multidão… Quer dizer. Foi motivo de cochicho e nojo geral por uns cinco minutos, pois até os surpresos e curiosos tem vida e contas pra pagar, não podem dispersar. Exceto o homem que se importou minimamente a lhe devolver o guarda-chuva italiano. Pousou sua mão no ombro de Ângela, agora só Ângela, mulher, e ele então disse:

– Sente-se melhor? — disse aquele tipão português que poderia ser seu marido. Poderia.

Ofereceu lenços para ela se limpar, que para ela soaram como uma aliança de casamento. Poderia? Não.

Mas escreveria então naquele mesmo dia, escondida com medo de que olhassem, no seu computador do escritório, um pouco da sua primeira história, meio Vale Abraão:

“Miss Algarve não foi burra que deixar um partido europeu lhe escapar, é claro.

Hoje vivem os dois em Portugal, numa casa de praia no Algarve. Ela, Miss Algarve, hoje uma escritora. Se sentia livre para se vestir mal igual às portuguesas. Os europeus não estão nem aí para nada mesmo, e gostava muito disso. Numa vida pacata e prosaica, como de qualquer outro. Não sei se feliz, mas cercada de museus e conventos. Não amava seu marido, continuava a sentir solidão bergmaniana. Mas passa bem ao que parece. Felicidade é coisa de gente burra mesmo — ainda dizia para consigo quando o marido e amigos estavam bêbados demais para ouvir. Eles jogavam sueca até tarde enquanto ela lia à meia luz no sofá e então ia para cama sozinha…

Bom. Ela se é. E há cinemas também em Portugal…

Ela, um filme do Woody Allen que ninguém achava bom. Mas e daí, nem todo mundo é Annie Hall. Essa era ela: o filme de uma vida.”

– Mas que droga! Não é isso. — disse, já em casa, ao arrancar a folha da máquina de escrever, recém-resgatada do armário mofado com Jane Fonda de collant. Ainda chegaria o dia onde escreveria algo de que se orgulhasse, nos intervalos de sua vida burocrática, entre um e outro Cosmopolitan. No fim, a Rua Augusta não era tão má… Apesar de ainda achar mal frequentada. “Essa merda não é nenhum Montmartre”, pensava ela enquanto revia O Fabuloso Destino de Amélie Poulain na sua prisão egocêntrica igual a uma jovem sonhadora.

Zapeando os canais ruins da TV aberta, sentiu falta aleatória de Ana Paula Arósio. Gostaria um dia de sumir igual à Ana Paula, ou até a Lídia Brondi, a Garbo do Itaim Bibi. Pensou na beleza radiante e olhos azuis de Arósio para criar uma nova personagem. Miss Algarve. Que seria como ela e ao mesmo tempo não. Enfim, fosse o que fosse, teria uma casa no Algarve. Mas nossa, como é tarde, e quanta besteira prum dia só… E parecia que tinha vomitado na época dos dinossauros. Riu perversa de quem teve que limpar o seu vômito. Será que alguém escorregou nele? Mais risos.

Muito que bem — concluiu ao vestir o seu baby doll. Não dormia nua porque tinha vergonha de morrer e ser encontrada nua por estranhos. Riu alto sozinha cortando a madrugada oca, tonta de si mesma e de sono. Ok, mulher, chega. A velha insuportável do apartamento de baixo bateu com a bengala na parede para que Ângela calasse a boca. Se recompôs.

Precisava ligar para sua mãe no Nordeste. A coitada só tinha um celular Nokia sem nem câmera. No dia seguinte, sem falta.

Nunca mais viu aquele homem português da plataforma, ou em bom português, do “cais”. Um dia ela ainda iria, sim, para Portugal. Zarpar através do mar, não de trilhos infestados de ratos. Mas depois daquele fatídico dia, ela nunca mais abriu reclamações em ouvidorias. Encenava consigo mesma possíveis retratações em relação à atendente Adriana. Dignidade demais era pior do que vulgaridade — sua última conclusão do dia.

Daquele dia em diante, Miss Algarve passou a comer abóbora com leite apenas em dias de folga; e no dia de seu aniversário, dia de Nossa Senhora da Conceição. Ela que não acreditava em Deus, mas gostava de santinhos. E passou a querer acreditar em algo.

Pedro Dantas

(em breve parte de uma coletânea de contos do mesmo autor)

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Pedro Dantas
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Written by Pedro Dantas

Writer, English/Russian teacher, Art enthusiast, Film lover. Escritor, professor, entusiasta. Brasil - Portugal

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