27 fatos sobre Clarice Lispector que talvez você não saiba

Tardiamente, mas sem deixar passar seu centenário — agora 103 anos! — em branco, venho por meio deste apanhado de curiosidades enaltecer a vida e obra de Clarice Lispector, para mim uma de nossas maiores escritoras — do Brasil e do mundo. Não só como seu leitor, mas como escritor eu mesmo, digo que ela é a minha maior inspiração de todas. Ao meu leitor de agora, mesmo que não compartilhe tamanha paixão, a curiosidade por Clarice já está de bom tamanho e é muito bem-vinda aqui neste espaço.

Depois de já ter lido muito seus livros e estudado sua trajetória de vida, agora compartilho com meus leitores algumas curiosidades de sua biografia, que talvez nem todos saibam ou pelo menos não com riqueza de detalhes. Sem grandes pretensões, gostaria de mostrar mais facetas de Clarice, desmistificando algumas coisas mas sem diminuir a sua grandeza e o seu mistério. Percebo que muitos não a compreendem ou se deixam levar pelo culto vazio da “escritora de frases da internet”, pouco conhecendo de fato a importância do seu legado. Por fim, resolvi juntar vários cacos de sua vida em um conteúdo só, de forma acessível (apesar de prolixa) para que admiradores e curiosos possam conhecer mais sobre sua pessoa.

Comecei com uma proposta simples de curiosidades breves mas terminei escrevendo uma mini dissertação de mestrado. Enfim. Que este texto ajude a difundir as várias faces da escritora, mãe, mulher, brasileira, Clarice Lispector. Aos leitores que tiverem paciência e interesse, meu muito obrigado.
- Clarice era sagitariana (entusiasta de esoterismo, misticismo e afins, além de um tanto supersticiosa)

Quem conhece a escritora e sabe o mínimo de astrologia já podia deduzir que Clarice era do signo de Sagitário (representado pelo centauro e sua flecha), já que nasceu no dia 10 de dezembro de 1920 na pequena cidade de Chechelnyk (ou Tchetchélnik), na Ucrânia . Veio ao Brasil com sua família ainda bebê, em fuga do genocídio judeu da época. Seu amigo de longa data Érico Veríssimo também era sagitariano do dia 17 de dezembro de 1905. Quando morou em Washington nos anos 50, Clarice conviveu bastante com Érico e sua esposa Mafalda.

Das características típicas do seu signo solar, poderia dizer que Clarice tinha um espírito livre e contestador; não necessariamente uma intelectual, era extremamente curiosa, interessada em livros, ideias, filosofia, conhecimento e por aí vai. Não bem otimista, em público e com estranhos podia ser sisuda e reservada (raramente sorria em fotos, crendo que “não seria levada a sério”), mas com amigos e família se soltava mais e podia ser bem descontraída, bem-humorada e até brincalhona. Adorava ouvir piadas e fazer imitações. Humor é algo bem sagitariano, e por mais que Clarice pudesse soar deprimida ou séria, sempre havia alguma pitada de humor em suas falas e gestos.
Como qualquer indivíduo do elemento Fogo, era apaixonada e intensa, contida mas às vezes exagerada, tímida e ousada ao mesmo tempo. Também honesta e direta, dizia verdades que muitos jamais teriam a coragem de dizer. Sagitário possui, acima de tudo, fé na vida. Como a flecha disparada pelo metade homem e metade cavalo, pertence ao infinito. Apesar de tudo — fé. “Eu me deixo ser”, nas suas próprias palavras.

Em seu conto-quase-crônica sem filtros Dia após dia, na coletânea A via crucis do corpo, Clarice comenta brevemente sobre seu mapa astral, em especial sobre sua influência forte em Sagitário (Sol e Lua), Aquário (possível Ascendente — idealista, genioso e humanista; supostamente a autora nasceu entre 10 e 11 da manhã) e Escorpião (seu misterioso e intenso Mercúrio, que explica sua prosa profunda e visceral).
“(…) Mas sou Sagitário e Escorpião, tendo como ascendente Aquarius. E sou rancorosa. Um dia um casal me convidou para almoçar no domingo. E no sábado de tarde, assim, à última hora, me avisaram que o almoço não podia ser porque tinham que almoçar com um homem estrangeiro muito importante. Por que não me convidaram também? por que me deixaram sozinha no domingo? Então me vinguei. Não sou boazinha. Não os procurei mais. E não aceitarei mais convite deles. Pão pão, queijo queijo.
Lembrei-me que numa bolsa eu tinha cem cruzeiros. Enquanto não preciso mais telefonar para a farmácia. Detesto pedir favor. Não telefono para mais ninguém. Quem quiser que me procure. E vou me fazer de rogada. Agora acabou-se a brincadeira.”

E ainda sobre si mesma, em outro momento, comentou sobre sua impulsividade. Nota-se que Clarice era muito crítica, mais consigo própria do que com qualquer outro. Sempre serviu muito aos outros e trabalhou muito por toda a vida, fato este que eu diria estar representado em seu mapa pela forte influência no signo de Virgem em Júpiter e Saturno. De nuances virginianas, Clarice era muito esforçada, workaholic, neurótica, caseira, deveras metódica, às vezes perfeccionista, trabalhando até a exaustão sem nunca deixar de ser mãe e dona-de-casa ao mesmo tempo. Mesmo talentosa, sempre foi extremamente humilde.
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. […] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.

E pra encerrar o assunto espiritualista, não podemos esquecer que Clarice frequentemente consultava cartomantes ou até outros oráculos, como o I Ching, para saber sobre si mesma e seu futuro. Era supersticiosa e também tinha fascínio por numerologia ou números em geral — na infância deu aulas de matemática para outras crianças. Brincou com a amiga escritora Lygia Fagundes Telles dentro de um avião com turbulência, algo do tipo: “não se preocupe, minha cartomante disse que não vai acontecer nada”. Quando Clarice recebia notícias maravilhosas, ria sozinha e se questionava: “seria engraçado se eu fosse atropelada logo depois”.
Pois uma das ideias centrais da sua novela final, A Hora da Estrela (vencedor do Prêmio Jabuti), é o fato (spoiler) de Macabéa ser atropelada logo após a cartomante Madame Carlota ter feito previsões maravilhosas para a moça (que no fim tinham fundo de verdade, afinal um loiro alemão mudaria a sua vida, mas seria o motorista daquele carro Mercedes Benz que a atropelou — sendo a sua morte “a hora da estrela”).

2. Nascida na Ucrânia, nunca voltou à terra natal e sempre se considerou brasileira

O fato de Clarice ter nascido na Ucrânia é sempre divulgado amplamente quando o assunto é sua biografia. Porém, pode haver dúvidas para o público em geral se a escritora de fato possuiu alguma ligação direta com o seu local de nascimento.

Clarice nasceu em 1920 na região da Podólia, sudoeste da Ucrânia, na região denominada República Popular da Ucrânia, antes da formação do bloco socialista de fato em 1922. Após a Revolução Russa de 17, no ano seguinte se deu a Guerra Civil Russa entre os bolcheviques (então no poder) e seus opositores (em especial o antigo exército), conflito esse que perdurou até 1920. O rastro dessa guerra civil deu força a um profundo antissemitismo na região, gerando perseguição e extermínio do povo judeu promovido pelos pogroms (os perseguidores do povo judeu). Os pais de Clarice, Pinkhas e Mania Lispector, e as suas irmãs mais velhas sofreram muito com a extrema pobreza e antissemitismo.

A emigração de judeus era proibida, fato que levou a família a adotar meios ilegais ou contar com a ajuda de familiares e conhecidos. Os Estados Unidos e o Brasil foram os destinos cogitados pela família, mas com o Emergency Quota Act na América que dificultou emigrações do Leste Europeu, optaram por fim emigrar para o Brasil, mais precisamente em Maceió, onde foram recebidos por uma irmã de Mania e o marido (que muito explorou o pai Lispector, alegadamente). Os nomes da família foram aportuguesados: Pinkhas virou Pedro; Mania virou Marieta; Leah virou Elisa; e Haia* (ou Chaya) virou Clarice (apenas sua irmã Tânia manteve seu nome original). Sem grandes perspectivas em Alagoas, os Lispector se fixaram de vez no Recife, Pernambuco — terra em que a menina Clarice passou sua infância e a marcaria para o resto da vida. Clarice depois usou Alagoas como terra natal de sua célebre personagem Macabéa.

Acredita-se que Clarice, a mais nova das filhas, tenha sido concebida para “curar” sua mãe Mania da sífilis, pois ela teria contraído a doença ao ser supostamente estuprada por um grupo de soldados. Apesar dessa informação não ser confirmada por parentes e amigos próximos da família, o biógrafo Benjamin Moser em sua biografia Clarice, não só sustenta essa teoria como também acredita que Clarice se sentia culpada por não ter sido capaz de curar sua mãe, que viveu debilitada até a sua morte em 1930, quando a então menina tinha apenas 10 anos de idade.

Em homenagem à mãe, Clarice compôs sua primeira peça de piano. Mais tarde, no conto memorialista Restos do carnaval da coletânea Felicidade clandestina, a escritora narra a história de uma jovem do Recife em conflito com a alegria contagiante do carnaval versus o cotidiano triste de casa com sua mãe doente.
“Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil — fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.”

Mas no último instante da folia, na escadaria de sua casa, quando menos esperava, a menina “desabrochou”.
“Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”


Acima, a casa de Clarice que se encontra abandonada no Recife, clamando por uma restauração. Abaixo, a sua estátua em frente à antiga residência

Clarice sabia hebraico, iídiche (ambas línguas judaicas) e também tinha vagas noções de russo por conta da infância, mas pouco dominava o idioma. Temos que lembrar que Russo e Ucraniano são línguas distintas, mas usam alfabetos parecidos (seguindo as letras do alfabeto cirílico) e pela proximidade geográfica e cultural, os dois povos conseguem se entender facilmente. O território russo, por ter dominado a região do Leste Europeu historicamente, fez com que o seu idioma se difundisse e prevalecesse até os dias de hoje.
A escritora nunca voltou ao seu país natal. Em uma de suas crônicas ao Jornal do Brasil, a autora comentou sobre a curiosidade de conhecer a Rússia/Ucrânia durante uma viagem à Polônia.
“[…] uma grande floresta negra apontava-me emocionalmente o caminho da Ucrânia. Senti o apelo. A Rússia me tinha também. Mas eu pertenço ao Brasil.”

*O nome original de Clarice, Haia, em russo se pronuncia “Raia” já que a letra X (rá) do alfabeto cirílico se pronuncia como o H do inglês ou R inicial/dois erres no português. Este som pode ser transliterado como “kh” ou “ch” no alfabeto latino. Por isso, algumas vezes o nome de nascimento de Clarice é escrito “Chaya”. Em ucraniano, seu nome completo é Хая Пінкасівна Лиспектор — se pronuncia Raia Pinrrassívna Lispector. Na tradição russa o nome do meio é patronímico, isto é, formado pelo primeiro nome do pai (Pinkhasovina = filha de Pinkhas). O nome final é o nome da família, no caso, Lispector. Clarice não sabia a origem de seu sobrenome, que para ela poderia significar talvez “flor no peito” ou “flor-de-lis” (numa tentativa de abrasileirar seu nome). Críticos que não a conheciam chegaram a pensar que fosse um pseudônimo, o que foi desmentido por Clarice.
3. Clarice já foi considerada “uma bruxa”

Foi no mesmo evento já mencionado no tópico 1, com Lygia Fagundes Telles. As duas estavam a caminho de uma convenção das bruxas (não de encontro com Anjelica Huston). O local foi Bogotá, na Colômbia. Tratava-se do “Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria” e Clarice gostou muito da experiência, além de se divertir muito na companhia da amiga Lygia pela cidade de Cali, próxima da capital. No Congresso, fez uma curta apresentação de muito sucesso ao ler uma tradução em espanhol de seu famoso e misterioso conto O ovo e a galinha (presente no seu livro de contos A legião estrangeira, 1964). Esse conto em particular fascinava a sua própria autora, que mais o sentia do que o entendia, já que é ele próprio pura abstração. Um breve trecho inicial para ilustrar, para quem não o leu:

“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. — No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. — Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. — Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. — Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. — Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. — O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.”

Apesar de ter aceitado o convite e desfrutado da experiência, é provável que Clarice tenha se sentido desconcertada num primeiro momento com a proposta um tanto inusitada. Já havia um enorme fascínio em torno de si: para muitos uma “deusa”, uma fada, uma louca, uma feiticeira. Admiradores e curiosos ao seu redor com frequência a descreviam como uma esfinge — o que é divertido, porque Clarice detestou a cidade do Cairo e não viu nada de mais no monumento propriamente dito (“nenhuma se surpreendeu uma com a outra”, escreveu). De qualquer forma, após a sua viagem à Colômbia, Clarice ganha ares ainda mais mitológicos, chegando ao ponto de seu amigo Otto Lara Resende dizer em roda de amigos, sobre a obra da autora, que “não se trata de literatura, mas de bruxaria”. Não surpreende, já que a escrita de Clarice é repleta de mistério e introspecção, tornando-a para muitos inacessível e até incompreensível. Por outro lado, esse mesmo mistério de textos difíceis de decifrar também ajudou e muito a torná-la cult.

4. Clarice cursou Direito e planejava reformar o sistema penitenciário

Segundo ela mesma, ao terminar o ginásio não tinha qualquer orientação sobre o que estudar. Mas Clarice sempre teve um forte senso de justiça dentro de si. Idealista e inconformada com a arbitrariedade do “direito de punir”, demonstrou durante a vida uma atitude de luta e reivindicação dos direitos humanos.

“O que eu via no Recife me fazia como me prometer que não deixaria aquilo continuar”. Um fato curioso que talvez tenha feito Clarice se solidarizar com os presidiários era residir próxima a uma penitenciária na capital pernambucana. Já no Rio de Janeiro com sua família no final da década de 30, estabeleceu-se numa casa simples no bairro da Tijuca, depois se mudando para o bairro do Maracanã, ambos na zona norte da cidade.
A decisão de se tornar advogada foi recebida com surpresa, pois a moça além de mulher em uma sociedade machista, não pertencia à elite carioca. Mas isso não a impediu de seguir seu intento e assim iniciou seus estudos em 1939 na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (hoje a Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ). Não era a única mulher do curso, mas de fato eram poucas. Em sua crônica O grupo (em comparação com o livro de Mary McCarthy e filme de Sidney Lumet), a atmosfera foi de melancolia por várias razões. A maior delas talvez tenha sido o fato de que nenhuma das colegas havia se tornado advogada (ela incluída). Clarice considerou a escolha um erro, pois concluiu não ter aptidão para a profissão. “Eu que me atrapalho em lidar burocraticamente com o mais simples papel”, escreveu na crônica.


Seu amigo e professor San Tiago Dantas ficava intrigado com a escolha de carreira de Clarice. Questionada, ela disse que Direito Penal muito a interessava. No decorrer do curso, porém, o professor foi um dos amigos que ajudou Clarice a se encontrar como literata. Pouco depois de terminada a faculdade, logo se casou; então a jovem terminou nunca exercendo a profissão de fato. Nessa época, Clarice alternava os estudos com o trabalho de jornalista (que falarei mais adiante).

Seus textos que talvez melhor explorem esse seu lado humanista sejam o ensaio Observações sobre o direito de punir, de 1941 escrito durante seu curso de Direito, e a famosa crônica Mineirinho, registro de sua perplexidade pela morte brutal de um bandido no ano de 1962.
No ensaio universitário sobre a questão prisional, Clarice faz reflexões pertinentes: “O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a Guerra … não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há”. E ainda na mesma época, a universitária trouxe à ordem do dia a questão da mulher dentro do mercado de trabalho — no texto Deve a mulher trabalhar?, numa época em que o assunto raramente era abordado.

Não só em textos mais diretos, mas também em seus livros de ficção Clarice abordou o direito de punir de forma existencialista e questionadora. Seu romance A maçã no escuro (1961), um dos mais densos e subestimados de sua obra, descreve a trajetória transformadora de um homem, Martim, em fuga de uma cena de crime supostamente cometido por ele: o assassinato de sua mulher. O que poderia ser uma história policial de suspense convencional dá lugar a uma trama existencialista de profundo exercício espiritual (influenciada até mesmo pela filosofia hindu). Altamente recomendado!

Já na emblemática crônica Mineirinho (outro texto favorito pessoal de Lispector), Clarice se coloca no lugar do famoso bandido do Rio de Janeiro, morto com treze tiros pela polícia. O criminoso da favela da Mangueira que “era devoto de São Jorge e tinha uma namorada”, segundo ela, também ficou conhecido como “o Robin Hood carioca” por roubar dos mais abastados para dar aos pobres.
A escritora foi corajosa ao demonstrar suas diversas sensações sobre o caso, em especial por seu olhar humano sobre o criminoso, que até nos dias de hoje seria condenado pelos mais conservadores que se opõem aos direitos humanos e endeusam a cultura do “olho por olho, dente por dente” e “bandido bom é bandido morto”. Alguns trechos da crônica, que está na coletânea póstuma Para não esquecer (1978).
“É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las.”

“Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”

“Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso — nesse instante está sendo morto um inocente.”
5. Clarice participou da Passeata dos Cem Mil em 1968 (apesar de sua literatura não ser “engajada”)

Em sua entrevista à TV Cultura em 1977, Clarice foi questionada sobre “qual seria o papel do escritor hoje no Brasil?”. Sem pensar duas vezes, respondeu: “De falar o menos possível”.
Clarice nunca escreveu textos assumidamente políticos. Seu único texto fictício de crítica social foi A hora da estrela, ao narrar a vida da nordestina engolida pela cidade grande. Aderiu sim a determinados protestos, como a Passeata dos Cem Mil em junho de 1968, até então o maior movimento de oposição à ditadura militar e que reuniu centenas de pessoas, dentre elas ativistas, militantes, artistas e intelectuais do país. Mas como disse sua amiga e assistente Olga Borelli, Clarice nunca participou de grupos específicos em prol de uma causa (ou sequer chegou a ser convidada). A solidão sempre fez parte da vida de Clarice e foi o germe de inspiração para sua arte de escrever. Para a escritora, as desigualdades sociais eram tão “óbvias” que não havia o que ser dito — era preciso mesmo agir. Sua literatura nunca foi alienada por não ser política, afinal seus escritos seguem a conhecida linha que sai do particular e atinge o universal, através da experiência cotidiana que se abala com as epifanias de seus personagens. A arte por si só já é política em seu cerne porque é um instrumento de reflexão e resistência.

Mesmo que falando pouco de forma explícita sobre sua revolta contra o governo militar, Clarice não era uma alienada, nem de longe. Na mesma entrevista pra TV Cultura, comenta o fato de estar sempre ao lado dos jovens, por se sentir próxima a eles e de seus ideais (“eles estão na minha”). Já em fevereiro de 1968, anos antes e até antes da passeata, Clarice emparedou o ministro da Educação e o presidente da República da época em carta aberta publicada na sua coluna do Jornal do Brasil. Nela, questiona a forma como o governa trata o ensino superior público, expressando preocupação com a exclusão de grande parcela dos jovens em decorrência do profundo elitismo instaurado (e até hoje ainda não vencido). Poderiam ser questionamentos feitos hoje em 2020, mas foram escritos nos anos 60, no auge do regime ditatorial que governou o Brasil por vinte e um anos.
“Senhor ministro ou Presidente da República, impedir que jovens entrem em universidade é crime. Perdoe a violência da palavra. Mas é a palavra certa.”
“Em primeiro lugar queríamos saber se as verbas destinadas para a educação são distribuídas pelo senhor. Se não, esta carta deveria se dirigir ao Presidente da República”.
“E estou falando em nome de tantos que, simbolicamente, é como se o senhor chegasse à janela de seu gabinete de trabalho e visse embaixo uma multidão de rapazes e moças esperando seu veredicto.”.
E termina transformando seu texto em um ato de protesto. Antes, não se podia protestar pela forte repressão militar. Hoje, por um forte sentimento de impotência, individualismo e conformismo que assola o nosso país.
“Que estas páginas simbolizem uma passeata de protesto de rapazes e moças.”

E que esse texto agora, em lembrança às palavras de Clarice, simbolize uma passeata de jovens diplomados, desempregados e desiludidos, frutos de uma geração perdida. Que ainda têm esperanças e são jovens — num país que não mais é o país dos jovens.
6. Seu perfume favorito é francês, raro e fora de catálogo

Clarice sempre foi uma mulher vaidosa, dona de charme e elegância natos. Sua bolsa à mão jamais faltava. Dizem que jamais saía sem um perfume, boa maquiagem e um adereço elegante para completar, como lenços e xales. Não à toa escreveu por bastante tempo colunas destinadas ao público feminino, textos nos últimos anos reunidos nos livros Correio feminino e Só para mulheres. À primeira vista, pode-se pensar que são abobrinhas machistas e estereotipadas para as mulheres da época, mas não é bem assim.


Clarice nunca se considerou uma cronista ao pé da letra. Contou com a ajuda do amigo Rubem Braga, cronista consagrado. Mesmo assim, nenhum dos dois considerava os textos de Clarice “crônicas” no sentido estrito, mas de qualquer forma, como tudo de Clarice, eram registros extremamente pessoais, simples e profundos ao mesmo tempo. Ela até chegou a brincar que se fosse tratar de temas sérios como a superprodução do café no Brasil, ainda assim ela seria pessoal. Mas não seria esse mesmo o seu charme?

O curioso dessas colunas para mulheres é que Clarice fazia uso de pseudônimos. O primeiro foi Tereza Quadros para a coluna Entre Mulheres entre maio e setembro de 1952; depois veio Helen Palmer no Correio da Manhã entre 1959 e 1961 (a personagem ganhou até quadro no Fantástico anos atrás); e por fim, Clarice aceitou o convite para ser ghostwriter da atriz Ilka Soares na coluna Só para Mulheres do jornal Diário da Noite de 1960 a 61.

Em geral a cronista feminina abordava temos como feminilidade, sensualidade, relacionamentos, etiqueta, receitas de beleza e culinária, bem-estar e organização do lar. Tereza Quadros saía do superficial ao chamar suas leitoras à reflexão, ao foco nos pequenos detalhes da vida. Helen Palmer não dava apenas dicas de cosméticos, como incentivava as leitoras a serem felizes: a felicidade como a verdadeira beleza. Em suma, em seus textos de jornal ela já deixava o convite para suas leitoras saírem da caixinha, mesmo que devagar e aos poucos, nas pequenas coisas do dia a dia.
Ok, Brasil, mas e o tal perfume favorito? Já no Jornal do Brasil, assinando com seu nome mesmo, num raro momento de revelação de um dos seus segredos de beleza (dessa vez sem pseudônimos) Clarice comentou que seu perfume favorito era Vert et blanc, da marca francesa Carven. No texto, a cronista reclama que seu perfume parou de ser fabricado, e de fato, o produto desde aquela época foi descontinuado, apesar da Carven ainda existir e fabricar fragrâncias, como o famoso Ma Griffe (perfume favorito de Judy Garland). Ainda não tive a oportunidade de sentir o aroma, mas dizem ser frágil e forte, mistura de flores e madeiras… Provavelmente Clarice só mencionou o perfume porque estava fora de circulação mesmo. Talvez fosse sobre este perfume, ou outro, que ela terminou dizendo:
“Vou tomar um banho antes de sair e perfumar-me com um perfume que é segredo meu. Só digo uma coisa dele: é agreste e um pouco áspero, com doçura escondida.” (conto O relatório da coisa; do livro Onde estivestes de noite, 1974)

“Eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar perfumes que me contrariem. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. É bom perfumar-se em segredo.” (em Aprendendo a viver)

“Amanhã vou partir para a Europa. De onde mandarei meus textos para este jornal. Minha sede será Londres. É de lá que planejarei minhas viagens. Por exemplo, vou a Paris de novo ver a Mona Lisa, pois estou com saudade. E comprar perfumes. E sobretudo reclamar com a Maison Carven por eles não fabricarem mais o meu perfume, o que mais combina comigo. Vert et Blanc (…)”.
7. Apesar de não praticante, a herança judia está presente em sua vida e obra
“Um jornalista me perguntou: por que escrever? Então eu lhe perguntei: por que você bebe água?”

Por que escrever? Clarice não sabia responder. Mas escrevia como que para se salvar. A palavra era a sua salvação; ainda mais descendente de um povo tão sofredor como os judeus. Não se sabe quanto sofrimento abalou Clarice em nível pessoal, desde sua infância fugindo dos pogroms até as barbáries contra o povo judeu na Segunda Guerra Mundial, mas com certeza não foi pouco, mesmo que em silêncio.

Pelo fato de ter convivido muito com pessoas católicas durante a vida, alguns se surpreenderam quando Clarice foi enterrada como judia em cemitério israelita. A escritora pouco mencionava o fato de ser judia. Crê-se que mais pela sua reserva do que fazer “segredo”. Há extremos na crítica literária que querem ou descrever Clarice como judia por excelência ou querem exaltar a brasilidade da mesma. De fato ela sempre se considerou brasileira e pernambucana acima de tudo. Enfim, acredito que ela fosse brasileira E judia (ainda que mais inconscientemente), sem anular qualquer lado de sua pessoa. Benjamin Moser elucidou muitos elementos judaicos na sua obra, até o lançamento de sua biografia, ainda pouco explorados pela crítica.

A referência judaica mais evidente em seus livros talvez seja o nome da protagonista de A hora da estrela, Macabéa. E não é só teoria pois a irmã de Clarice, Tânia Kaufmann, confirmou a informação em entrevista: Macabéa recebeu esse nome por conta dos macabeus, o exército de rebeldes judeus que assumiu o controle de partes da Terra de Israel, tendo como maior representante Judas Macabeu. Forte e determinado, foi quem liderou a revolta dos macabeus contra o Império Selêucida. Os macabeus lideraram o movimento que levou à independência da Judeia e reconsagração do Templo de Jerusalém. Depois da morte de Judas Macabeu, os hasmoneus sucederam a linhagem que governou Israel até a subjugação ao domínio romano em 37 a.C. Macabéa, assim como o povo que lhe inspirou o nome, insiste até o final em existir. Ela, em sua pobreza resiliente e infantil, comendo cachorro-quente e bebendo Coca-Cola (que segundo Clarice, tinha gosto de Sabão Aristolino, mas bebia mesmo assim).

Concluímos que Clarice de fato não dava tanta importância para sua ascendência judia. Mais: preferia nunca tocar no assunto publicamente de forma explícita. Sua irmã Tânia Kaufmann chegou a dizer que Clarice era contra a publicação dos textos autobiográficos da irmã mais velha, Elisa, focados na vida difícil na Ucrânia e nos percalços da família no Nordeste brasileiro. Nunca saberemos por que Clarice preferia deixar o passado difícil da família guardado a sete chaves. Medo? Não podemos julgá-la. Sendo assim, só podemos respeitar a sua posição. De qualquer forma, Elisa Lispector publicou as suas obras.


8. A vida amorosa de Clarice foi marcada por amores impossíveis

Com Vênus no signo de Capricórnio, o amor nem sempre se dá estritamente no nível físico e carnal. Como no mito de Sísifo, a cabra sobe com a pedra até o alto de uma montanha para logo depois rolar montanha abaixo. Então a vida é só isso? Bom, façamos o melhor disso então. Dona de um realismo gritante, nunca deixou de se amar e amar aos outros — como quem ama tudo e ama o nada.
“Através de meus graves erros — que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles — é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.” (texto A certeza do divino)
A vida afetiva de Clarice é tão misteriosa quanto sua vida e obra de modo geral. Não parece ter colecionado homens em grande número, mas as paixões que viveu foram de fato intensas, e obviamente não lhe faltaram admiradores apaixonados por toda a vida.
LÚCIO CARDOSO

Clarice na sua juventude se apaixonou pelo escritor assumidamente homossexual Lúcio Cardoso (autor de Crônica da Casa Assassinada, Mãos Vazias, etc). Num primeiro momento, mesmo sabendo da sexualidade do amigo, acreditou que poderia “curá-lo” (isso dito nos anos 1940, ok?). Não foi feliz e muito se frustrou pelo amor impossível, entretanto nunca deixou de manter a amizade com Lúcio, quem ajudou a escritora a se encontrar na sua atividade literária. Através de Cardoso, frequentou as rodas literárias do “grupo introspectivo” do Rio, no Bar Recreio — se encantando pelos escritores e amigos Cornélio Penna, Augusto Frederico Schmidt e Octavio de Faria, que muito a influenciaram. Foi também Lúcio quem apoiou Clarice a continuar compondo textos a partir das anotações dispersas, caóticas, fragmentadas. Ele que deu a ideia do título Perto do coração selvagem, retirado de uma passagem de James Joyce — com quem Clarice foi comparada, mesmo sem tê-lo lido de fato até então. Já fora do Brasil, a correspondência entre os dois continuou e Cardoso contribuiu também na composição do segundo romance de Lispector, o pouquíssimo lembrado O lustre (1946). O personagem Daniel, amor obsessivo da protagonista tanto neste romance como também no conto Obsessão, é claramente inspirado em Lúcio Cardoso, que viria a falecer em 1968, para a tristeza de Clarice.

O lustre é talvez o livro mais obscuro e menos conhecido de Clarice. Começou a ser escrito pouco depois de Perto do coração selvagem e terminado em Nápoles. Como um possível reflexo dos sentimentos da autora naquela época, já residindo no estrangeiro e deveras isolada, O lustre tem uma construção truncada, complexa e difícil de acompanhar. Diferente de seu primeiro livro, teve uma recepção fria.

MAURY GURGEL VALENTE, seu marido diplomata

Formalmente, o homem com quem mais conviveu foi o seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, também pai de seus dois filhos, Pedro e Paulo. As cartas de amor no início da relação trocadas entre os dois são adoráveis; nota-se nelas um amor pueril cheio de cumplicidade. Mas com o passar dos anos, vemos um gradual desencanto da escritora com a vida de casada e, mais ainda, com a vida diplomática cheia de regras e deveres entediantes. “Aqui sou apenas Clarice Gurgel Valente”. (falarei mais pra frente da vida de Clarice no exterior). Creio que a maternidade, os amigos e sua atividade literária, junto com uma esperança de voltar ao Brasil, mantiveram Clarice ocupada e fortalecida para se manter dentro da vida conjugal. Ela fez algumas visitas ocasionais ao Brasil durante esse período de casada no exterior.


A separação de Maury ocorreu finalmente em 1959, após 16 anos de casamento. Clarice foi uma mulher muito corajosa ao resolver abrir mão de uma vida confortável ao lado do marido no estrangeiro para então voltar ao Brasil, desquitada e com dois filhos para criar sozinha. E mais: destinada a viver de seu trabalho como escritora.

PAULO MENDES CAMPOS

Por boa parte do tempo Clarice era mãe e escritora. Boa parte do dia era destinada ao lar, afazeres cotidianos e aos seus filhos — e escritos nos intervalos de tudo isso, fossem meras ideias, pensamentos ou momentos de datilografia na máquina de escrever em seu colo. Mas geralmente o momento mais produtivo para ela era de madrugada, tomando café, fumando e ouvindo a rádio relógio, sem ser interrompida. Gostava muito de ouvir música clássica também.

Mas e a mulher Clarice Lispector? São muitas as interrogações sobre sua vida amorosa pós-casamento, já que era muito discreta. O que se sabe é que Clarice se apaixonou pelo escritor e amigo Paulo Mendes Campos. Um interesse amoroso curioso, pois assim como Lúcio Cardoso, era mineiro e católico. A escritora mantinha relação com o famoso quarteto de mineiros intelectuais: Fernando Sabino (que rendeu livro de correspondência Cartas perto do coração), Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e… Paulo Mendes Campos. Mas novamente, seu coração não foi feliz na escolha: Paulo era um homem casado. Mesmo assim viveu esse amor — breve e intenso — no ano de 1962. Até que Paulo recebeu um ultimato de sua mulher inglesa, Joan Abercombie, e assim se afastou de vez de Clarice, indo morar com a esposa e os dois filhos em Londres. Clarice, para piorar, ficou mais isolada no meio literário. E de novo, assim como era com Lúcio, os dois eram extremamente parecidos, até demais. O jornalista Ivan Lessa disse sobre eles: “em matéria de neurose, nasceram um para o outro”.


Há quem diga que Clarice faleceu ainda apaixonada por Paulo, mesmo anos após o fim da relação. Em um cronograma de afazeres escrito à mão em seus últimos meses de vida, Clarice faz um apelo a Santo Antônio em suas anotações: “Santo Antônio, pelo amor de Deus, ache o PMC para mim, para sempre, mesmo que só como amigo! Amém”. Paulo Mendes Campos faleceu em 1991.

9. Viveu anos fora do Brasil, mas a vida diplomática muito a desagradou

“Madame Bovary c’est moi”, disse a escritora pouco antes de deixar o Brasil, ao reler o livro de Gustave Flaubert. Seria uma profecia de seus próximos anos?

Em Portugal fez o comentário espirituoso de que as portuguesas “têm cara de cachorro” e “Lisboa parece ser uma péssima cidade para se viver”. Risos e concordando, como um brasileiro que mora em Portugal há cinco anos.
Clarice detestou sua estada na melancólica Suíça. Não falava alemão e passava o maior tempo em casa, aborrecida pelo silêncio sepulcral da capital Berna, onde residia na rua Ostring. Talvez tenha sido o momento de maior tédio e isolamento de sua vida. Pouco inspirada, saudosa do caótico Brasil, presa a uma rotina maçante de esposa de diplomata, sem amigos a não ser por correspondência. Foi o nascimento de seu primeiro filho, Pedro, que deu um novo sentido à sua vida. O menino nasceu em 10 de setembro de 1948.



Foi por essa época que escreveu outro livro pouco lembrado de sua obra: A cidade sitiada, publicado em 1949. Também complexo, trata de uma cidade interiorana em vias de desenvolvimento urbano em paralelo à história de Lucrécia Neves. Oca igual Macabéa, “ela era só o que via”.

A família enfim deixou Berna e passou um breve período na cidade de Torquay, na Inglaterra, para em seguida fixarem residência em Washington, nos Estados Unidos. Este período foi mais produtivo para Clarice, agora mãe de dois filhos (Paulo nasceu na capital americana, em 1953). Ela escreveu contos — que primeiro publicaram-se como Alguns contos e depois como Laços de família (1960), talvez seu melhor livro de pequenas histórias. Iniciou seu livro A maçã no escuro, publicado apenas em 1961. A convivência com Erico e Mafalda Verissimo, também em Washington, devia levantar muito o astral de Clarice. Os Estados Unidos eram muito mais agitados e parecidos com o Brasil do que a Europa, o que deve ter ajudado na adaptação de Clarice (além do fato dela saber inglês). Era uma mãe e esposa dedicada, todavia não cozinhava muito e geralmente dependia de cuidadoras (nurses) para ajudar na criação dos dois filhos pequenos.
Maury Gurgel Valente faleceu em 1994.


10. Clarice já escreveu sobre sexo e personagens LGBT+ em sua obra

A VIA CRUCIS DO CORPO, coletânea de contos “crus”
A via crucis do corpo (1974) foi escrito para a editora Artenova por encomenda, algo raro para Lispector. Pensou em assinar sob pseudônimo, mas terminou por escrever tudo em seu próprio nome e apenas durante um fim de semana. Os contos “imorais” são bem diferentes do estilo típico da autora: são curtos e grossos, de temas tabus como sexo, masturbação, fantasias eróticas. Dos 14 contos, chamam a atenção as histórias envolvendo assédio contra a mulher (A língua do P) e personagens LGBT+ (nos contos Ele me bebeu e Praça Mauá — não contarei detalhes, vou sugerir a leitura apenas para os curiosos!). Até mesmo uma mulher atraída por um extraterrestre há nesse livro (no conto Miss Algrave).
Leitura mais do que recomendada!
11. Clarice adorava cinema (e desejava ser adaptada por Antonioni)

Maisie Goes to Reno, estrelado por Ann Sothern, foi um dos vários filmes que Clarice viu no cinema — esse um dos seus escapismos da realidade melancólica e entediante na Europa. Em breve visita aos estúdios de Hollywood, já nos Estados Unidos, Clarice foi confundida com uma artista e até pediram seu autógrafo
Pelo que se pode notar nos seus registros, Clarice gostava muito de cinema em geral, desde filmes escapistas hollywoodianos até películas mais artísticas como as europeias. Um texto marcante da autora foi sobre o filme Persona, de Ingmar Bergman.

“Não, não pretendo falar do filme de Bergman. Também emudeci ao sentir o dilaceramento de culpa de uma mulher que odeia seu filho, e por quem este sente um grande amor. A mudez que a mulher escolheu para viver a sua culpa: não quis falar, o que aliviaria o seu sofrimento, mas calar-se para sempre como castigo. Nem quero falar da enfermeira que, se a princípio tinha a vida assegurada pelo futuro marido e filhos, absorve no entanto a personalidade da que escolhera o silêncio, transforma-se numa mulher que não quer nada e quer tudo — e o nada o que é? e o tudo o que é? Sei, oh sei que a humanidade se extravasou desde que apareceu o primeiro homem. Sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente, enquanto as palavras dizem o que não quero dizer. Também não vou chamar Bergman de genial. Nós, sim, é que não somos geniais. Nós que não soubemos nos apossar da única coisa completa que nos é dada ao nascimento: o gênio da vida.”
Leia mais aqui: http://anovicacinefila.blogspot.com/2016/11/persona-por-clarice-lispector.html

Seu filho Paulo Valente declarou em depoimento ao IMS que Clarice desejava ser adaptada pelo cineasta italiano Michelangelo Antonioni. Escolha essa que seria perfeita porque o estilo silencioso e existencial do realizador casa perfeitamente com a prosa subjetiva e pungente de Lispector. E, claro, Clarice também valorizava o nosso cinema nacional. Ao ver Corpo Ardente, de Walter Hugo Khouri, comentou sobre sua semelhança com a atriz protagonista, Barbara Laage. Mas que no fim das contas se identificou mais com o cavalo selvagem do filme.


“(…) Mas às dez e meia da noite eu estava bem acordada: acabava de ter visto o filme de Khouri, Corpo ardente. Iria de qualquer modo porque se tratava de filme dele. Mas dessa vez acrescentava-se mais um motivo: Marly de Oliveira, minha afilhada de casamento, e Maria Bonomi haviam-me dito que Barbara Laage, a atriz do filme, parecia-se extraordinariamente comigo. Maria acrescentou: com você, mas parada, não móvel. A moça é mesmo parecida comigo, em bonito, é claro. Uma amiga disse que a parte da boca e do queixo não se parece, que em mim é bem mais suave. Deu-me um pouco de aflição ver-me na tela. Mas cobicei as roupas da atriz como se a isso eu tivesse direito, já que nos parecíamos. Gostei mesmo foi do cavalo preto do filme. Tem uns movimentos de libertação do longo pescoço e da cabeça manchada de branco que são uma beleza. O fato é que me identifiquei mais como o cavalo preto do que com Barbara Laage. Inclusive eu costumava ter um jeito de sacudir os cabelos para trás que significava exatamente isso: uma tentativa de libertação. Hoje felizmente não preciso mais do gesto. Não, às vezes preciso.” (crônica no Jornal do Brasil, 1966)



12. Clarice nunca foi rica e não foi uma escritora popular em vida

“Querida Andréa,
Você quer me explicar o que quer dizer um sonho que tive hoje de noite? Ontem fui dormir tão cansada, mas tão cansada, que fiquei com medo de cair na rua. Dormi de oito e meia da noite até quatro e meia da manhã. Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo o meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa e elétrica e cansada que quebrei um copo.”
Hoje ao ver como a figura de Clarice é conhecida, muita gente pode pensar que a escritora sempre desfrutou de grande popularidade ou até mesmo uma vida luxuosa, mas não é bem assim!

Clarice era bem conhecida e admirada, realmente. Mas nunca chegou perto da fama que possui hoje. Como disse em entrevista, era considerada uma escritora “hermética”, isto é, dona de uma escrita difícil e introspectiva demais para “as massas”. Era mais reconhecida dentro dos círculos literários, e provavelmente conseguiu atingir mais o grande público através de seu trabalho em jornais do que através de seus livros propriamente ditos. Livros esses que poderiam vender satisfatoriamente (não sei de números), mas como toda vida de escritor no Brasil (e no mundo), Clarice passava por perrengues sim e seu sustento vinha mais do jornalismo e traduções paralelas ao seu trabalho de escritora. Conflitos com as editoras, trabalhos por fora para aumentar a renda, problemas do dia a dia, procura por cozinheiras e empregadas, cuidar dos filhos e da casa… Enfim, típica vida de classe média. Clarice era praticamente uma mistura de freelancer com dona de casa.

Mesmo já uma escritora consagrada (Maria Bethania se ajoelhou aos seus pés e a chamou de deusa), os anos 70 em particular não foram uma fase fácil para Clarice — viriam a ser seus últimos anos de vida. Em 1973, ela perdeu o emprego de cronista no Jornal do Brasil, o que afetou sua vida financeira consideravelmente (não se sabe se foi demitida por razões políticas, pessoais, ou simples corte de pessoal). Sua saúde já ia mal mesmo antes do câncer no ovário ser detectado, principalmente por conta das sequelas de sua mão queimada, e por isso precisava da ajuda de assistentes como Olga Borelli para continuar a escrever, já que preferia datilografar suas obras. Ao fim da vida, cansada, preferia manuscritos à mão para registrar suas ideias e rascunhos iniciais.

Seus modelos de máquina de escrever foram Underwood, Olympia e Olivetti (esta última abaixo, hoje na Fundação Casa de Rui Barbosa)

Tenho certeza que Clarice iria odiar a fama que tem hoje. É positivo sim, por um lado, afinal hoje ela é mais compreendida, estudada, lida, publicada e acessível do que antigamente. Contudo, vemos seus textos com frequência maltratados e seu nome usado a torto e a direito de forma leviana e ignorante. Sua imagem é tão deturpada nesse processo midiático que há quem ache que Clarice é uma escritora de frases feitas, bonitas e motivacionais, sendo que ela nunca foi nada disso. Pior ainda é quem vê a sua entrevista no Youtube e conclui apenas com “nossa, que mulher louca, depressiva”. Enfim, é lamentável a ignorância de certos indivíduos (muitos até formados e com fácil acesso à informação).

A editora Rocco também não perde tempo em lançar a todo o momento um “novo livro” de Clarice Lispector, que nada mais é do que apenas um novo condensado de textos reunidos de mil formas diferentes. Não desmereço o trabalho da editora, que já nos presentou com muitas obras de boa qualidade, mas é nítido que o nome da escritora é usado até a exaustão pela editora e por extensão seus herdeiros.
“Se é popular, então não deve prestar”, concluiu a escritora em off pouco antes de morrer, sobre o sucesso de A hora da estrela. E ainda sobre a recepção de seus livros, a autora comentou sobre a relatividade de “entender” uma obra ao relatar um caso curioso em relação a uma obra sua em particular: A paixão segundo G.H (1964). Um professor de português do colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, falou para ela que havia lido o livro mais de uma vez sem entender do que se tratava. Ironicamente, uma adolescente pouco depois disse para Clarice que lia e relia a obra, dizendo que aquele era o seu livro de cabeceira.

“Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de “meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artraud. Ou Rimbaud. É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, frequentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci/conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos.”
Caio Fernando Abreu, escritor e jornalista, em carta ao amigo José Márcio Penido. Porto Alegre, 22 de dezembro de 1979.
E JÁ DEU PROCESSO NA JUSTIÇA!
Em 2001, um comercial da Fiat causou sensação ao narrar o seguinte poema em off (segue trecho inicial):
Mude
Mas comece devagar, porque a direção
é mais importante que a velocidade.
Mude de caminho, ande por outras ruas,
observando os lugares por onde você passa.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Descubra novos horizontes.Edson Marques
Infelizmente, o escritor Edson Marques não recebeu os créditos devidos pelo seu poema. O comercial mencionou erroneamente Clarice Lispector como a autora (por sinal ainda ligam Clarice à autoria do poema). Até hoje o autor não recebeu nenhuma resposta ou indenização por parte da agência publicitária responsável pelo comercial, alegando ter comprado legalmente os direitos do texto direto do herdeiro de Clarice, seu filho Paulo Gurgel Valente, por 40 mil dólares! Paulo, por sua vez, nunca deu um parecer sobre a situação e não devolveu o dinheiro recebido por uma obra que não é da autoria de sua mãe. Edson Marques, autor independente, diz não querer dinheiro algum, apenas cobra uma retratação que até hoje não aconteceu.
Leia mais sobre o caso em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/de-quem-e-o-poema-de-clarice/
13. Suas irmãs Elisa e Tânia eram escritoras — e sua mãe também

Elisa Lispector

A irmã mais velha da família, Elisa não teve uma vida fácil. Nascida em 24 de julho de 1911 também na Ucrânia, presenciou com seus pais todo o horror do extermínio em massa do povo judeu. Praticamente não teve infância; em decorrência da doença da mãe assumiu muitas tarefas para si e trabalhou arduamente por toda a vida, mesmo já no Brasil, distante do terror antissemita da Europa. Além de escritora, foi funcionária pública com diversos cargos e funções no exterior. Fofoca: teve uma breve relação com o também escritor Orígenes Lessa, autor de O feijão e o sonho e um dos imortais da Academia Brasileira de Letras.

Diferente da famosa irmã, Elisa explorou o judaísmo com profundidade em seus livros. Ambas Elisa e Clarice tinham estilos introspectivos e intimistas. Porém Clarice era mais artística e subjetiva, enquanto Elisa tinha um forte tom autobiográfico e memorialista. Seus livros são belas peças de arquivos históricos que merecem ser lidas e (re)descobertas. Escreveu romances como Além da fronteira, No exílio e O muro de pedras. Também foi contista, autora de Sangue no sol, Inventário e O tigre de bengala. Foi premiada em vida com os prêmios José Lins do Rego, Coelho Neto e Pen Club. Aparentemente, a obscuridade sobre sua obra se deve à falta de reedição de suas obras, que estão cada vez mais caras e escassas nos sebos da vida.

Elisa faleceu no Rio em 6 de janeiro de 1989, aos 77 anos.
Tânia Lispector Kaufmann

Tânia era a irmã do meio. Foi funcionária pública assim como Elisa. Ao contrário das duas irmãs, não escrevia livros de ficção, mas sim livros técnicos e manuais, como por exemplo Morada Moradia (1976), livro de dicas de como organizar e tomar conta de uma casa. Discreta e fora da mídia, as informações sobre Tânia são bem escassas na internet.

Casou-se com William Kaufmann em 1938, assim adotando o nome do marido. Em 1940 deu à luz Márcia Algranti, esta a única sobrinha de Clarice já que Elisa não teve filhos. Clarice era muito próxima de Tânia e chegou a lhe dedicar seu segundo romance O lustre na epígrafe do livro.
Tânia faleceu em 2007.
A correspondência das irmãs Lispector foi reunida no livro Minhas queridas, da editora Rocco.

Marieta Lispector escrevia poesia secretamente
Clarice na sua derradeira entrevista comentou o fato inusitado, do qual só tomou conhecimento pouco antes de morrer. Uma tia lhe disse que Marieta mantinha um diário e escrevia poesias, para a surpresa da filha.
Sobre Pedro Lispector
Tânia descreveu o pai Pinkhas/Pedro como “o homem de melhor caráter que já conheci”. O biógrafo Benjamin Moser em entrevista comenta o legado do pai Lispector: “Foi ele, um homem quase sem talento para o comércio, que lutou a vida inteira, dia após dia, para se sustentar, conseguiu educar as filhas, dar-lhes um futuro melhor. Foi um esforço quase sobre-humano. Quando morre, muito jovem, Clarice tem 20 anos. Seus sacrifícios não foram em vão. Uma das filhas iria colocar o nome do pobre mascate entre os grandes nomes do Brasil. Mas Pedro Lispector não viveria para ver”.
Leia mais em: http://museujudaicorj.blogspot.com/2009/10/aspectos-judaicos-de-clarice-lispector.html
14. Clarice não escrevia poemas (com exceções)

Assim como Rubem Braga disse que as crônicas de Clarice “não eram crônicas”, Manuel Bandeira quando leu as poesias de Clarice, disse que “não eram poesias” e fez críticas duras a ela. Infelizmente, por conta disso, Clarice queimou as poesias — o que deixou Bandeira com profundo remorso. Ele disse depois por carta: “Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mandou. Você interpretou mal as minhas palavras”.
“Você tem peixinhos nos olhos: você é bissexta: faça versos, Clarice, e se lembre de mim… Clara… Clarinha… Clarice”.

Apesar disso, a escrita de Clarice pode ser facilmente considerada “poesia em prosa”, já que é muito imagética, subjetiva e metafórica. Seus textos são frequentemente recitados e alinhados em formato de poesia. Água viva (1973), talvez seu romance mais subjetivo, é quase todo uma poesia em prosa sobre o “it” — a essência da vida.
Posto aqui duas poesias raras de Clarice:
Mas há vida
Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.Estrela Perigosa
Estrela perigosa
Rosto ao vento
Marulho e silêncio
leve porcelana
templo submerso
trigo e vinho
tristeza de coisa vivida
árvores já floresceram
o sal trazido pelo vento
conhecimento por encantação
esqueleto de idéias
ora pro nobis
Decompor a luz
mistério de estrelas
paixão pela exatidão
caça aos vagalumes.
Vagalume é como orvalho
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.No obscuro erotismo de vida cheia
nodosas raízes.
Missa negra, feiticeiros.
Na proximidade de fontes,
lagos e cachoeiras
braços e pernas e olhos,
todos mortos se misturam e clamam por vida.
Sinto a falta dele
como se me faltasse um dente na frente:
excrucitante.
Que medo alegre,
o de te esperar.
Felizmente, Todas as Crônicas trouxe à tona duas poesias esquecidas de Clarice ao grande público, escritos nos anos 40. Leia em: http://www.blogletras.com/2011/06/2-poemas-de-clarice-lispector-por.html
15. Clarice pintava quadros, assim como serviu de modelo para vários pintores

PINTURA
“Quem sabe escrevo por não saber pintar?” — C.L.

Este é um lado pouco conhecido da autora: a pintura. Sem grandes aspirações, considerava mais uma forma de relaxamento e terapia pessoal. Numa conferência no Texas, em 1963, Clarice comentou o hobby, chegando até a pensar que sua vocação poderia ser a pintura, mas lhe faltava o “dom”. Ironicamente, seu talento com as palavras não lhe proporcionava tanto prazer quanto a sua pintura amadorística. Pintou ao todo 22 quadros a óleo, sendo três sobre tela e grande parte sobre madeira. Quem tiver curiosidade pelo lado pintora, recomenda-se o livro Clarice Lispector — Pinturas, de autoria de Carlos Mendes de Sousa, professor português de literatura brasileira da Universidade do Minho. O livro foi lançado no Brasil pela Editora Rocco.

“Quanto ao fato de escrever, digo, se interessa a alguém, que estou desiludida. É que escrever não me trouxe o que eu queria, isto é, a paz. O que me descontrai, por incrível que pareça, é pintar. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço”. E ainda declara: “Pinto tão mal que dá gosto!”.

Sua escrita é permeada de imagens, cores, jogos de luzes e sombras. Algumas de suas personagens eram pintoras, como a protagonista do fluido Água viva (quase intitulado Objeto gritante):
“Vou te dizer uma coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um ‘isto’. E escrevo com ‘isto’ — é tudo o que posso. Inquieta. Os litros de sangue que circulam nas veias. Os músculos se contraindo e retraindo. A aura do corpo em plenúrio. Parambólica –o que quer que queira dizer essa palavra. Parambólica que sou. Não posso me resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo.”

RETRATOS DE CLARICE

Clarice posou para alguns artistas, principalmente durante sua estadia na Europa nos anos 40. Seu retrato mais famoso talvez seja o quadro de Giorgio de Chirico, pintado em 1945, quando a Segunda Guerra estava prestes a terminar. Nem Clarice nem De Chirico ficaram satisfeitos com o resultado, mas mesmo assim Clarice tinha o retrato na parede de sua casa.

“Eu estava posando para De Chirico quando o jornaleiro gritou: ‘È finita la guerra!’. Eu também dei um grito, o pintor parou, comentou-se a falta estranha de alegria da gente e continuou-se. Aposto que, no Brasil, a alegria foi maior.” [em carta para sua irmã Elisa]



Em sua coluna Diálogos possíveis com Clarice Lispector na revista Manchete, a autora novamente manifestou interesse nas artes plásticas, entrevistando personalidades da arte brasileira como Djanira (1914–1979), Oscar Niemeyer (1907–2012), Iberê Camargo (1914–1994), Carybé (1911–1997), Fayga Ostrower (1920–2001) e Augusto Rodrigues (1913–1993), para quem posou uma vez e perguntou: “Quando posei para você, você jogou muito papel fora. Você me achou difícil de desenhar ou simplesmente não era o dia ‘certo’?”.

16. Clarice fazia entrevistas (e também foi jornalista)

Dizem que Clarice não só escrevia bem, como também era uma editora caprichosa e comprometida, acompanhando as publicações pessoalmente em todos os detalhes do processo e contribuindo com recortes e moldes personalizados para que as colunas (pequenas) ficassem bem realçadas na edição final dos periódicos. E vale lembrar que a presença de mulheres em redações era muito escassa. Além de Clarice, contamos nos dedos as outras escritoras que tinham colunas literárias em jornais: Dinah Silveira de Queiroz (autora de A muralha e Floradas na serra), Elsie Lessa (que escreveu ininterruptamente para o jornal O Globo de 1952 até sua morte em 2000) e Rachel de Queiroz (autora de O quinze).

A primeira fase de Clarice jornalista foi no início dos anos 40, quando ainda estudava e não havia de fato iniciado sua carreira literária. Inicialmente trabalhou em escritório de advocacia, mas não gostando muito, foi na cara e na coragem atrás de uma oportunidade no jornalismo, munida de sua tímida ousadia. Raimundo Magalhães Jr., secretário do Ministro de Propaganda, foi com a cara de Clarice e não só a publicou como arranjou emprego para ela de editora e repórter na agência de notícias do governo — a única mulher na época que ocupava tal cargo. Além da Agência Nacional, também trabalhou na redação do jornal A Noite, que publicaria o seu primeiro romance, além de colaborações com revistas universitárias, traduções de textos e primeiros contos de sua autoria publicados em jornais e revistas variados.

Um dos momentos mais emblemáticos da jovem jornalista foi na inauguração do Museu Imperial, em Petrópolis (RJ), quando conheceu o então presidente Getúlio Vargas.
“E certamente na primeira noite ao abrigo, cinco mil garotas não poderão adormecer. Na escuridão do quarto, as milhares de cabecinhas, que não souberam indagar a razão de seu abandono anterior, procurarão descobrir a troco de que se lhes dá uma casa, uma cama e comida.”
Texto Onde se ensinará a ser feliz, de 1941, sobre a inauguração de um internato para meninas sem lar, idealizado pela primeira-dama Darcy Vagas
A jovem Clarice chegou depois a escrever uma carta ao presidente numa tentativa de acelerar o seu processo de naturalização, sem sucesso, só conseguindo ser naturalizada de fato em janeiro de 1943. Pouco depois, enfim, pôde se casar com Maury, já que a legislação proibia o casamento de um diplomata com uma “estrangeira”.
Depois de casada e já escritora de livros, assumiu diversas colunas de jornal, como aquelas destinadas ao público feminino que já mencionamos. Fez sucesso com textos para a revista Senhor, no início dos anos 60. Mas sua incursão mais frutífera nos periódicos com certeza foi como cronista aos sábados para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Suas crônicas pessoais e reflexivas atraíram muitos leitores, deixando de lado a fama de “escritora hermética” e revelando uma Clarice mais gente como a gente, sem nunca deixar de lado suas percepções peculiares e únicas sobre a vida. Essas crônicas foram depois reunidas no livro A descoberta do mundo (o cantor Cazuza revelou em entrevista que lia o livro como se fosse a Bíblia, assim como leu Água viva mais de cem vezes).
Para fazer mais dinheiro, Clarice realizou diversas entrevistas ao longo dos anos, com personalidades das mais variadas: Tarcísio Meira, Tônia Carrero, Paulo Autran, Elis Regina, Tom Jobim, Chico Buarque, Bibi Ferreira, Millor Fernandes, entre muitos outros. Suas perguntas variavam muito: às vezes convencionais, às vezes provocativas. Perguntou a Nelson Rodrigues: “você é de esquerda ou de direita?”. Sua pergunta favorita no final das conversas era “O que é o amor?”.

As entrevistas de Clarice estão publicadas nos livros De corpo inteiro e Entrevistas.

Segundo Nádia Battela Gotlib, uma das maiores pesquisadoras da obra de C.L., ela “fazia [as entrevistas] para aumentar a renda mensal. Entrevistava amigos, escritores, personalidades com as quais por vezes não tinha nenhuma afinidade. Às vezes, os próprios amigos preparavam as perguntas e respostas, segundo depoimento de Antonio Callado prestado a mim e à Aparecida Maria Nunes”.
17. Sua famosa entrevista à TV Cultura foi feita às pressas

1977 foi um ano difícil. Não só Clarice Lispector partiu, mas perdemos também Carolina Maria de Jesus, Maysa, Elvis Presley, Charles Chaplin, Maria Callas, Joan Crawford!

Clarice nunca gostou de dar entrevistas. Era sempre nítido o seu desconforto; ficava muda ou falava pouco, não gostando de ser o centro das atenções e muito menos de ser considerada “famosa”. Apenas quando era entrevistada por amigos é que Clarice se deixava relaxar mais e conversava mais solta.

Em evento quando estava em São Paulo no ano de 1977, Clarice foi convidada a dar uma entrevista televisionada para a TV Cultura — a qual viria a ser sua única gravada em vídeo. Já vi muitos culparem o despreparo do jornalista Júlio Lerner pela condução confusa da entrevista, mas poucos sabem que ele foi escolhido pouco tempo antes de entrar no ar. Assim, teve que improvisar e elaborar perguntas de última hora, além do fato da própria emissora não ter proporcionado mais tempo e espaço para um tratamento digno à escritora, nem mesmo um ensaio ou conversa prévia entre ela e o jornalista. Algumas perguntas irritam por serem lugar-comum e pouco criativas, mas de qualquer maneira foi um diálogo bastante revelador que pôde enfim deixar um registro audiovisual emblemático de Clarice para as futuras gerações.

O jornalista descreveu a ocasião:
“De minha sala na redação de “Panorama” até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada. Talvez falar sobre A paixão segundo GH… Ou quem sabe sobre A maçã no escuro e Perto do coração selvagem… Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio para entrevistá-la.

(…) São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas meia hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o estúdio. Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista. Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice.”

Olga Borelli desmentiu que Clarice já soubesse da doença quando gravou o programa. Ainda que não ciente, é visível no vídeo o seu desconforto e aparente cansaço. Curiosamente, como que profética, a autora só autorizou que a entrevista fosse ao ar depois de sua morte. Sua última fala foi “estou falando de meu túmulo”. Dizem que uma estagiária chorou nos bastidores durante a gravação. E assim, a entrevista foi ao ar no programa Panorama em dezembro de 1977, poucos dias depois da morte de Clarice.
É notável que Clarice já demonstrava grande cansaço nos seus últimos dias. Esse esvaziamento se refletiu em seu derradeiro trabalho, publicado postumamente, Um Sopro de Vida. O livro é claramente o esvaziamento da narrativa.

“Ela me disse diversas vezes que terminaria tragicamente. Converteu-se na sua própria ficção. É o melhor epitáfio possível para Clarice”, disse o jornalista Paulo Francis. Pois como Paulo definiu, podemos concluir que Clarice, mesmo não autobiográfica no sentido estrito, ficcionalizou a si mesma nos seus livros. Uma das últimas falas da escritora teria sido no hospital para uma enfermeira: “Você matou o meu personagem”.
Recomendo a entrevista registrada pelo IMS de 1976 com os amigos Marina Colasanti, e Affonso Romano de Sant’Anna, ambos escritores. Trechos estão disponíveis no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=fUbXp1XtOe0 (na íntegra no livro Outros escritos).

18. Quase morreu em um incêndio no final dos anos 60

REVOLTA
“Quando tiraram os pontos de minha mão operada por entre os dedos, gritei. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.” (A descoberta do mundo, p. 193)
Em 14 de setembro de 1966, Clarice Lispector foi vítima de um incêndio no quarto de seu apartamento no Leme. Clarice era uma fumante inveterada e também fazia uso de remédios para dormir. Acidentalmente deixou um cigarro aceso ao dormir, e assim começou o fogo que destruiu o cômodo e provocou sérias queimaduras na escritora. Clarice passou três dias entre a vida e a morte e ainda mais dois meses hospitalizada. Sua mão direita (com que escrevia) sofreu ferimentos de tal forma que até a amputação chegou a ser considerada, mas felizmente descartada. Após longa recuperação e fisioterapia, Clarice foi recuperando os movimentos da mão, mas ela nunca mais teria a mesma mobilidade de antes.

Vinicius de Moraes chegou a dizer para Clarice em entrevista: “tenho tanta ternura por sua mão queimada”. (Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho, disse ela)
19. Clarice traduziu Agatha Christie, entre outros autores (e é a autora brasileira mais traduzida no exterior)
SUAS TRADUÇÕES DE OUTROS AUTORES

C.L. era fluente em português, inglês, francês e espanhol. No seu período na Itália, soube se virar com italiano mas não creio que fosse fluente.
De fato, Clarice adorava leituras densas e reflexivas. Mas isso não a impedia de apreciar best-sellers e histórias de suspense. Não se considerava uma leitora excepcional. Enquanto estava escrevendo seus livros, gostava de ler coisas mais palatáveis e fluidas, como Georges Simenon e Agatha Christie. Da autora, traduziu o romance policial Cai o pano.
“Prazer engraçado tive ao traduzir um livro de Agatha Christie. Em vez de lê-lo antes no original, como sempre faço, fui lendo à medida que ia traduzindo. Era um romance policial e eu não sabia quem era o criminoso, e traduzi com a maior pressa, pois não suportava a tensão da curiosidade”.
Também traduziu Oscar Wilde (O Retrato de Dorian Gray), Lillian Hellman (The Little Foxes), Edgar Allan Poe (Histórias Extraordinárias), entre outros. Livros infanto-juvenis traduzidos por C.L. : As viagens de Gulliver (Jonathan Swift), The history of Tom Jones (Henry Filding), L’Île Mystérieuse de Julio Verne.
Em espanhol, sua única tradução foi de Jorge Luis Borges: o conto Historia de los dos que soñaron.
TRADUÇÕES DE SEUS LIVROS

Em vida, costumava não gostar das traduções de seus livros porque achava que as editoras estrangeiras não respeitavam a sua prosa — dificílima de traduzir, impossível de ser 100% fiel ao texto original. Raramente ficava satisfeita com os resultados finais, mas por fim aceitava a existência dos mesmos (fingindo que não existiam).
Nos números, consta que C.L. teve mais de 200 traduções em mais de 10 idiomas. Diferente de décadas passadas, hoje em dia suas traduções são muito mais criteriosas e fiéis ao seu estilo. Benjamin Moser, após biografá-la nos anos 2000, conseguiu popularizar ainda mais o nome da escritora brasileira mundo afora.

20. As comparações com outros escritores modernos não a agradava

Quando lançou seu primeiro livro, foi logo de cara comparada com a inglesa Virginia Woolf (Mrs. Dalloway, Um teto todo seu…), com o irlandês James Joyce (Ulisses, etc), e com o francês Marcel Proust (Em busca do tempo perdido). Clarice, todavia, não tivera contato com nenhum destes autores antes de iniciar sua carreira, lendo-os só depois de seu lançamento no mercado editorial.

Virginia Woolf

A comparação com Virginia lhe despertava sentimentos mistos. Não a ofendia porque Virginia Woolf é uma escritora consagrada na literatura moderna (Mrs. Dalloway, Orlando, As ondas, Um teto todo seu, e por aí vai). Também é impossível não perceber o tom intimista em comum próprio das duas autoras, salvas as particularidades de cada uma. No entanto, Clarice já confessou em crônica não gostar da comparação com Woolf porque a escritora inglesa cometeu suicídio em 1941 ao se afogar no Rio Ouse. Para Clarice, “na vida deve-se ir até o fim”. Comentou também que era impossível ter se inspirado em Virginia quando começou a escrever, afinal só foi ler a autora britânica anos depois (sua escolha foi pelo clássico Orlando).
Tchekhov (a pronúncia mais correta é “Tchêrrov” e não “Tchekóv”)

Clarice hoje é muito comparada com o russo Anton Tchekhov, especialmente por seus contos marcados por silêncios, pouca ação, epifanias durante situações corriqueiras, fluxo intenso de pensamentos e emoções. A autora era admiradora do escritor russo, a ponto de recomendar um livro de contos dele na sua coluna do Jornal do Brasil.
Katherine Mansfield

Cito Mansfield mais para relembrar a forte influência sobre a obra de Clarice. Foi o seu livro Felicidade que Lispector leu e disse “Isto sou eu”. A autora ainda era jovem e tinha comprado o livro de Katherine com seu primeiro salário— mas não conhecia a autora neozelandesa nem sabia de sua fama literária. Escolheu o livro por acaso na livraria, como era de costume seu.
Virginia Woolf e Katherine Mansfield mantiveram uma relação ambígua de admiração e antipatia. Relatos costumam apontar para uma provável “inveja” de Woolf, que supostamente já se embriagou dizendo “Mas por que eu não escrevo como ela?!”. Já Mansfield trepidava entre os extremos: adorou o primeiro livro de Virginia, o maravilhoso The Voyage Out (traduzido no Brasil como A viagem) e detestou o segundo livro da autora, o romântico e convencional Noite e dia (Night and Day). E dali em diante mantiveram a relação ambígua.
Ainda sobre Katherine, podemos facilmente criar um elo entre o conto Amor de Clarice, e o conto Felicidade (original Bliss) de Mansfield. Ambos são sobre mulheres casadas que até então se consideram felizes e plenas, sem grandes preocupações a não ser o cotidiano trivial. Até que as duas personagens, de formas diferentes e em contextos diferentes, entram em conflito existencial a ponto de questionarem todas as suas vidas. Ana de Amor ao fazer uma visita imprevista ao Jardim Botânico. Bertha em Bliss ao vislumbrar uma simples e fascinante figueira do jardim.
SARTRE E CIA
Muitos foram os filósofos que inspiraram Clarice durante sua vida. Clarice nunca escondeu ler e admirar o francês Jean-Paul Sartre, mas discordava quanto a seus textos seguirem o mesmo caminho das filosofias de Sartre. Não foi uma existencialista com E maiúsculo; não obstante, ela e praticamente todos os seus contemporâneos foram influenciados pelo existencialismo.
Já o filósofo holandês Spinoza, por exemplo, muito influenciou Clarice quando criou seu primeiro romance Perto do coração selvagem e sua protagonista amoral, a “víbora” Joana.

Publicado em 1943, o primeiro romance de Clarice causou furor no meio literário pelo seu estilo inovador inédito no país, marcando o início da terceira geração do Modernismo brasileiro, representado em especial por ela e pelo autor Guimarães Rosa (Grande sertão: Veredas, Sagarana…). Por seu primeiro livro venceu o Prêmio Graça Aranha.
21. Clarice também escrevia livros infantis

Esse não é um fato tão inusitado para quem já conhece a obra da autora desde a infância. Por sinal, antes de conhecer bem Clarice, sua foto na orelha do livro muito me fascinava pela beleza e pelo olhar penetrante. Meu primeiro livro dela, ainda criança, foi Quase de verdade. É uma fábula tipicamente brasileira e fantástica narrada com muito humor pelo cachorro da escritora: Ulisses, o cachorro cor-de-guaraná.


Clarice teve uma relação muito forte com animais durante a vida. Dois cães em especial marcaram sua trajetória. Dilermando, o qual infelizmente foi obrigada a abandonar antes de uma mudança na Europa, fato que muito a entristeceu e gerou o conto O crime do professor de matemática. Ulisses, um cachorro curioso que bebia whisky e comia cigarros, foi o companheiro de Clarice nos seus últimos anos, já que Pedro e Paulo já estavam crescidos na época. O nome Ulisses veio de um misterioso analista que Clarice teve na Suíça nos anos 40. Esse mesmo nome havia sido usado também para o personagem masculino de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Reza a lenda que esse analista teve que se mudar de cidade na época, de tão fascinado que ficou por Clarice. Ela, por sua vez, também nunca esqueceu do doutor Ulisses.
Clarice uma vez foi mordida pelo cachorro Ulisses. Diante do choque inesperado, ela se lembrou que aquele ser tão querido e próximo dela ainda era um animal com os seus instintos.

Seu filho Paulo “ordenou” uma vez que Clarice escrevesse uma história especialmente para ele. Dali surgiu O mistério do coelho pensante. Contudo, a mãe de Paulo achou aquilo tudo “tão pouca literatura” que simplesmente guardou e não deu mais atenção. Só um bom tempo depois resgatou o livro, a pedido de editores em busca de história infantis de sua autoria. E então não parou mais e escreveu mais livros infantis. São eles: O mistério do coelho pensante; A mulher que matou os peixes; A vida íntima de Laura (uma galinha); Quase de verdade e Como nasceram as estrelas.


Pessoalmente penso que seus livros infantis merecem mais repercussão. A escritora em nenhum momento subestima a inteligência das crianças, mas também está sempre a tratá-las de igual para igual, sem nunca deixar de estimular a imaginação de seus pequenos leitores. Seus temas e estilo no fim são os mesmos, só que tratados com uma linguagem mais pueril, lúdica e acessível. Como ela mesma disse em entrevista: “quando eu me comunico com a criança, é fácil, porque sou muito maternal. Agora quando me comunico com o adulto eu estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil”. E ainda definiu o adulto como triste e solitário, ao contrário da criança que “tem a fantasia, é solta”.
Em Portugal, O mistério do coelho pensante é leitura recomendada pelo Plano Nacional de Leitura (PNL).
22. Dos seus dois filhos, Paulo ainda vive; Pedro sofreu com a esquizofrenia

Infelizmente não encontrei uma confirmação concreta sobre notícias de Pedro Gurgel Valente, o filho mais velho de Clarice. Algumas publicações tratam dele como falecido, outras dizem que ele está vivo. Até a publicação deste texto, deixo a questão no ar…
Fato não muito divulgado da vida pessoal de Clarice é de seu filho Pedro já na adolescência ter sido diagnosticado com esquizofrenia. A doença do filho foi muito difícil tanto para ele como para sua mãe, que recorreu a diversos tratamentos e internações para o filho por anos.

Paulo Gurgel Valente (nascido em Washington, 10 de fevereiro de 1953) hoje tem 71 anos, é economista e escritor. Descobri durante a pesquisa para este texto que Paulo também publicou livros. Há alguns anos publicou livros infantis: O leão de tanto urrar desanimou e Pedro e a onça, e também livro para adultos: Lealdade a si próprio.

23. Viveu muitos anos no bairro do Leme, no Rio de Janeiro
“E com a altivez que só tenho quando pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde de Pelotas.” (da crônica Mal-estar de um anjo)
Teve dois endereços no Leme, o pequeno e calmo bairro da Zona Sul do Rio que fica na ponta da Orla de Copacabana. O primeiro foi o Edifício Visconde de Pelotas, na Rua General Ribeiro da Costa, número 2, apartamento 301.O segundo e último endereço foi na Rua Gustavo Sampaio, número 88, apartamento 701.

O Edifício Macedo, construído na década de 50, hoje tem a possibilidade de ganhar o nome de Clarice. De qualquer forma, a entrada do prédio possui uma placa indicando que Clarice ali residiu entre 1965 até a sua morte em 1977. Atualmente a atriz Zezé Motta reside no 701 do edifício.

Alguns endereços de Clarice durante seus primeiros anos no Rio de Janeiro:
1936 — Rua Mariz e Barros, 341 — Maracanã
1939 — Rua Lúcio de Mendonça (atual Alberto Sabin) 36,
casa 3 — Tijuca
1940 — Rua Silveira Martins, 76, casa 11 — Catete
1943 — Rua Santa Clara, 403 — Copacabana (já casada)
24. Clarice torcia para o Botafogo e tinha um interesse peculiar por futebol

“Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo.”
Pois é, para aqueles que só têm uma imagem intelectualizada blasé de Clarice, talvez não imaginassem que ela nutria um fascínio pelo esporte paixão nacional. Um dia, o colunista de esportes Armando Nogueira escreveu que trocaria uma vitória do Botafogo por uma crônica de Clarice sobre o esporte. E assim ela atendeu ao pedido, tecendo elogios ao jornalista esportivo e também comentando um pouco sobre sua admiração por futebol.
Clarice se assume torcedora do Botafogo, a Estrela Solitária, mas também se assume uma completa leiga no assunto. Confessa que só foi uma vez a um estádio, coisa que a faz se considerar “uma brasileira errada”. Eventualmente via os jogos na televisão com o filho Paulo, também Botafogo, e perguntava tudo sobre o jogo ao filho, que respondia com certa impaciência típica de filho com a mãe leiga no assunto.

O mais interessante na crônica é o momento em que Clarice compara o futebol com ballet, até mesmo uma “luta de gladiadores”.
“Não, não imagine que vou dizer que futebol é um verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte, como de gladiadores. E eu — provavelmente coitada de novo — tinha a impressão de que a luta só não saía das regras do jogo e se tornava sangrenta porque um juiz vigiava, não deixava, e mandaria para fora de campo quem como eu faria, se jogasse (!). Bem, por mais amor que eu tivesse por futebol, jamais me ocorreria jogar… Ia preferir balé mesmo. Mas futebol parecer-se com balé? O futebol tem uma beleza própria de movimentos que não precisa de comparações.”
Uma das entrevistas mais inusitadas de Clarice foi logo com o técnico Zagallo, quando o mesmo era técnico do Botafogo e pouco depois comandou a seleção vencedora de 1970. O assunto não ficou só em futebol: foi também política, literatura e… Amor! Zagallo ficou desconcertado quando Clarice lançou sua pergunta final típica: “O que é o amor?”.
“É provável que ele, como a maioria das pessoas, nunca tenha parado o movimento da vida para reflexionar sobre a vida, e sobretudo para se fazer essa pergunta capital”, divaga Clarice antes da resposta.
“É um sentimento recíproco”, concluiu o técnico.
25. Ela tinha a “língua presa”

Quem ouve a voz da autora nas entrevistas, pode se perguntar sobre o seu estranho sotaque. Na verdade ela mesma dizia ter problema de língua presa. Houve a possibilidade de fazer cirurgia, mas Clarice nunca quis e assim ficou com aquele seu jeito particular de falar até o fim dos dias. Junto a isso, dá pra notar um considerável sotaque nordestino na fala de Clarice (fruto de sua infância no Recife) em algumas de suas entonações. As origens eslavas de sua família podem ter influenciado um pouco no seu modo de falar.
26. Sua assinatura chega a valer até 10 mil reais na internet


Arrebatar um exemplar autografado de Clarice hoje em dia não é tão fácil assim. A autora fazia eventuais tardes e noites de autógrafo de seus livros sim, mas temos que lembrar que Lispector morreu há quase 50 anos, o que aumenta o valor dos livros em si que já são raros. Aproveitando a grande fama da escritora, muitos vendedores colocam o preço lá nas alturas. Atualmente, no Mercado Livre, há um anúncio de livro autografado por Clarice pelo preço de 12 mil reais. Tirando o excesso deste, que não é incomum, a média normal de preço fica em torno dos 1000 reais, para mais ou para menos.


Contudo, não se deixe enganar. Se você tiver sorte no garimpo de sebos da vida, é provável que ache um exemplar autografado bem mais em conta. Eu encontrei no Estante Virtual, depois de anos à procura, um exemplar de Laços de Família autografado por apenas 80 reais (barato se pensar no nível de raridade). E ainda por cima com dedicatória pessoal, raro para Clarice, que costumava ser mais breve e formal nas dedicatórias. Pelo que dá para perceber, o fator diferencial foi que o leitor era primo de seu amigo íntimo Hélio (Pellegrino, provavelmente).

27. Já criticou a TV brasileira abertamente

Em 1967, no Jornal do Brasil, comentou o “fenômeno” do programa do Chacrinha, apresentador que reinaria na televisão brasileira até os anos 80. Coitada, se visse a TV de hoje continuaria decepcionada — muito mais.
“De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa que me pareceu durar mais que uma hora.
E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante — falta-lhe imaginação ou ele é obcecado.
E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo à custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?
Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.”
Em contrapartida, Clarice gostava de assistir às telenovelas. Assim como os romances policiais, as novelas de TV serviam para relaxar e esvaziar a sua mente das complexidades de seus livros e dos aborrecimentos cotidianos.

EPÍLOGO — CLARICE NOS PALCOS E NO CINEMA

O Instituto Moreira Salles (IMS) lançou no dia do aniversário de 100 anos de Clarice Lispector um site exclusivamente dedicado a ela. Pode ser acessado através do link: https://claricelispector.ims.com.br/
Clarice já foi levada aos palcos diversas vezes. Em vida, pôde testemunhar e contribuir com a produção de Perto do coração selvagem em 1965 no Teatro Maison de France, no Rio. O espetáculo foi dirigido por Fauzi Arap e contou no elenco com as participações de José Wilker, Dirce Migliaccio e Glauce Rocha. A escritora parece muito à vontade com a equipe do espetáculo :)

Aracy Balabanian, Rita Elmor e Beth Goulart foram algumas das atrizes que representaram a própria Clarice Lispector em produções teatrais aclamadas pela crítica.


CINEMA
Em memória: Suzana Amaral (1932–2020), diretora de A hora da estrela (1985). Lembro até hoje de Yudith Rosenbaum, professora especialista na obra de C.L., comentando em aula na Letras USP um episódio tenso mas hoje engraçado envolvendo a diretora. Supostamente ela havia sido sequestrada dentro de seu próprio carro e em determinado momento saltou do carro em alta velocidade, conseguindo escapar no fim das contas e sem grandes ferimentos. E já era uma senhora de idade! hahahaha

A hora da estrela é um dos poucos longas-metragens adaptações da obra da escritora. O filme possui muitas liberdades poéticas e diferenças do livro, fato compreensível já que são meios diferentes. O filme em si é interessante, não incrível e talvez datado, porém o mais marcante é mesmo a atuação de Marcélia Cartaxo no papel de Macabéa, que lhe rendeu um Urso de Ouro do Festival de Berlim. E claro, a participação de Fernanda Montenegro como a cartomante, Madame Carlota (a atriz trocou correspondência com Clarice).

Recentemente, após anos de espera, foi lançado o filme A paixão segundo G.H. (o famoso livro transcendental da mulher e da barata, obra-prima de Clarice) estrelado por Maria Fernanda Cândido como G.H. e com direção de Luiz Fernando Carvalho. E também estreou há poucos anos uma adaptação de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, protagonizado por Simone Spoladore.
E por fim, mas não menos importante: o nome de Clarice é escrito com C, jamais com SS.
Obrigado a todos pela leitura!
Pedro F. Dantas
